Estudo mostra a relação entre a insegurança alimentar e a saúde mental durante a pandemia de COVID-19

Um estudo do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), conduzido durante a pandemia de COVID-19, concluiu que as pessoas com menor escolaridade, desempregadas, com menos rendimentos e com sintomas de ansiedade e depressão são as que se encontram em maior risco de insegurança alimentar.

O estudo, recentemente publicado na revista científica Journal of Psychosomatic Research, e conduzido online, entre novembro de 2020 e fevereiro de 2021, procurou estudar, para além de outros fatores, a relação entre a insegurança alimentar e a saúde mental de uma amostra da população portuguesa, considerando os efeitos que a pandemia de COVID-19 teve nestes dois domínios.

O conceito de segurança alimentar é reconhecido, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO na sigla inglesa), como “uma situação que existe quando todas as pessoas, em qualquer momento, têm acesso físico, social e económico a alimentos suficientes, seguros e nutricionalmente adequados, que permitam satisfazer as suas necessidades nutricionais e as preferências alimentares para uma vida ativa e saudável”.

Assim sendo, a insegurança alimentar é um fenómeno que ocorre quando um indivíduo não possui acesso físico, económico e social a alimentos de forma a satisfazer as suas necessidades, conforme a definição da FAO.

Como anteriormente demonstrado por outras crises financeiras, as famílias com baixos rendimentos e socialmente vulneráveis enfrentam circunstâncias superiores de insegurança alimentar, condição esta que pode desencadear maiores níveis de ansiedade e de depressão.

“Dado   o impacto da insegurança alimentar na saúde mental, procurámos com este artigo explorar a relação entre a insegurança alimentar e a saúde mental (nomeadamente os sintomas de ansiedade e depressão) numa amostra de base populacional, mas não representativa da população, durante o período da pandemia. Paralelamente, fizemos um retrato sociodemográfico dos participantes no nosso estudo para percebermos quais são os determinantes que mais se associam à insegurança alimentar e ao desenvolvimento de sintomas de depressão e ansiedade, de forma a podermos intervir sobre eles”, explica Ana Aguiar, primeira autora do estudo e investigadora do ISPUP, no laboratório Epidemiologia da infeção por micobactérias, VIH e outras infeções sexualmente transmissíveis, pertencente ao Laboratório associado para a Investigação Integrativa e Translacional em Saúde Populacional (ITR), coordenado pelo ISPUP.

Para avaliar a relação entre a insegurança alimentar e a saúde mental, os investigadores conceberam um questionário online, disponível entre novembro de 2020 e março de 2021, com vista a recolher as respostas de indivíduos residentes em Portugal e maiores de 18 anos. Foram utilizadas escalas para medir os sintomas de ansiedade e depressão nos indivíduos, assim como os níveis de insegurança alimentar. Foi também recolhida informação sociodemográfica sobre os participantes. 

No total, 882 pessoas responderam ao questionário, das quais cerca de três quartos (71%) eram mulheres. A maioria da amostra (cerca de 76%) tinha um nível de escolaridade correspondente ao ensino superior e a maior parte (78%) referiu encontrar-se a trabalhar, desde o início da pandemia. Cerca de 65% dos participantes eram habitantes da região Norte do país.

6,8% da amostra estava numa situação de insegurança alimentar

A prevalência de insegurança alimentar na população estudada foi de 6,8%, percentagem inferior à que tem sido reportada em outros estudos sobre o tema, durante a COVID-19, em Portugal. 

Uma das explicações para a divergência nos valores encontrados poderá dever-se à diferença nas escalas utilizadas nos vários estudos e ao facto de a população participante na investigação do ISPUP ser bastante escolarizada e jovem, e de uma grande parte ter continuado a trabalhar, mantendo o seu rendimento, durante a pandemia.

Os autores constataram que a insegurança alimentar era significativamente maior nas pessoas com menos de 12 anos de escolaridade. Adicionalmente, os indivíduos que, à data do questionário, ficaram desempregados devido à COVID-19, também se encontravam mais frequentemente numa situação de insegurança alimentar, assim como as pessoas que reportaram ter mais cuidado com os gastos, relativamente ao rendimento do agregado familiar.

Note-se que 6,5% dos indivíduos incluídos na amostra revelaram sintomas de depressão e 26% de ansiedade. As pessoas que apresentaram sintomas de ansiedade e depressão, também revelaram um maior risco de estar numa situação de insegurança alimentar.

O risco de insegurança alimentar é oito vezes superior nas pessoas menos escolarizadas

Os investigadores calcularam qual a probabilidade de as pessoas participantes no estudo virem a estar numa situação de insegurança alimentar.

Concluíram que os indivíduos menos escolarizados mostraram uma probabilidade oito vezes superior de estar numa situação de insegurança alimentar, quando comparados com os mais escolarizados.

Também as pessoas com sintomas de depressão tinham uma probabilidade cinco vezes maior de estar numa situação de insegurança alimentar, enquanto que as que apresentavam sintomas de ansiedade tinham uma probabilidade sete vezes superior de estar nesta situação.

Ana Aguiar refere a importância de considerar todos os determinantes que influenciam a predisposição das pessoas para virem a estar numa situação de insegurança alimentar.

“Do ponto de vista da saúde pública, é importante identificar os fatores biopsicossociais específicos, que podem exacerbar tanto os problemas de saúde mental, como os problemas de insegurança alimentar. Importa também fazer, no futuro, uma análise longitudinal para se perceber se é a insegurança alimentar que leva a uma pior saúde mental, ou o contrário”, aponta.

A investigadora salienta que “é urgente incluir ferramentas dirigidas à população que aumentem a sua resiliência, capacitando-as com estratégias para lidar quer com os problemas de saúde mental, quer com a insegurança alimentar. A adoção de uma abordagem integrada na forma de lidar com os problemas é fundamental, assim como os apoios prestados às famílias em situação de maior crise”.  

“O aparecimento da COVID-19 explicitou, ainda mais, a enorme discrepância entre diferentes realidades sociais que coexistem nos diferentes países, incluindo Portugal. Os riscos para a segurança alimentar e nutricional foram agora aprofundados pela emergência da pandemia. Estes tipos de estudos são fundamentais durante um contexto que causou enormes alterações na sociedade, por forma a antecipar problemas acrescidos no futuro e preparar intervenções atempadas”, remata.

Com esta investigação, os decisores conseguem perceber de forma clara quais são os grupos populacionais que merecem atenção prioritária para evitar que vivam numa situação de insegurança alimentar exacerbada e/ou simultaneamente com problemas de saúde mental.

O estudo, intitulado The bad, the ugly and the monster behind the mirror – Food insecurity, mental health and socio-economic determinants, contou com a coordenação de Raquel Duarte (ISPUP e ITR) e com a cocoordenação de Marta Pinto (Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto).

A investigação faz parte do projeto de doutoramento de Ana Aguiar, que recebeu financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e do Programa Fundo Social Europeu.

Imagem: Unsplash/engin akyurt

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