Tuberculose e COVID-19: estigmatização vs “normalização” da doença respiratória infeciosa

A estigmatização da Tuberculose é uma das principais causas da demora no diagnóstico e da dificuldade em controlar a transmissão. Ter COVID-19 já se tornou mais “normal”.

Um estudo recente, Tuberculosis and COVID-19 Related Stigma: Portuguese Patients Experiences, – que contou com a participação de duas investigadoras do ISPUP, Raquel Duarte e Ana Aguiar – procurou avaliar o estigma sentido pelos doentes que contraíram Tuberculose e/ou COVID-19, entre 2019 e 2021, explorando a sua dimensão, manifestações e implicações para a saúde.

O estigma social associado às doenças infeciosas caracteriza-se por uma associação negativa entre uma pessoa ou um grupo de pessoas que partilham determinadas características e uma doença específica, levando esta associação à “rotulação”, à criação de estereótipos, à discriminação, etc.

Este estigma pode refletir-se tanto em atitudes como em experiências vividas, ou seja, pode ser um sentimento internalizado de vergonha e autorrejeição, quando o indivíduo aplica o estigma a si mesmo, ou pode ser um sentimento vivenciado, quando o indivíduo se sente excluído por terceiros ou vítima de comportamentos discriminatórios.

Importa reforçar que o estigma social associado à Tuberculose (TB) está documentado como sendo uma das principais causas da demora na procura de tratamento e até da interrupção prematura do mesmo, sendo estes dois fatores, por sua vez, obstáculos determinantes ao controlo da doença.

Estudo analisou testemunhos de 9 participantes que foram infetados com Tuberculose e/ou COVID-19

O presente estudo procurou avaliar o estigma sentido pelos doentes que contraíram Tuberculose e/ou COVID-19, explorando a sua dimensão, manifestações e implicações para a saúde.

Através de uma análise qualitativa – por meio de entrevistas semiestruturadas, levadas a cabo por duas médicas que realizaram o seu internato em pneumologia – as investigadoras procuraram entender como é que os nove participantes/pacientes perceberam a sua experiência pessoal ao contrair Tuberculose e/ou COVID-19. As entrevistas foram compostas por perguntas de resposta aberta e de resposta curta que tocavam vários tópicos, desde a experiência pessoal enquanto doentes, experiências de estigma sentido ou vivido em diferentes contextos, conhecimentos e perceções sobre doenças e tratamentos, adesão ao tratamento e outras questões mais estruturais sobre os sistemas de saúde. Por fim, os participantes foram ainda incentivados a falar livremente sobre a sua perceção em relação ao estigma e a dar a sua opinião sobre possíveis estratégias para mitigá-lo.

Estes participantes foram identificados através de uma pesquisa nos registos médicos disponíveis do Centro de Diagnóstico Pulmonar de Vila Nova de Gaia, sendo os critérios de inclusão: (1) ser maior de 18 anos e (2) estar ou já ter estado infetado com Tuberculose (com envolvimento pulmonar) e/ou COVID-19.

Investigadoras identificaram oito tópicos comuns entre os participantes

A análise das entrevistas conduzidas a estes nove participantes permitiu aos investigadores identificar oito tópicos comuns: (1) conhecimento e crenças; (2) atitudes em relação à doença; (3) conhecimento e educação; (4) estigma internalizado; (5) estigma experienciado, (6) estigma antecipado; (7) estigma percebido e (8) evolução temporal do estigma.

Conhecimento e crenças

“Quando me disseram, pela primeira vez, que eu tinha Tuberculose, eu fiquei um pouco apreensiva porque não sabia o que era, nem que a doença ainda existia… e como até já tinha tomado a vacina, pensava que era imune (…) quando tive a consulta de pneumologia fiquei muito mais esclarecida e a minha perceção sobre a doença mudou completamente.” (Paciente mulher, 48 anos, infetada com tuberculose em 2019).

Neste tópico, o “grau” de conhecimento reportado sobre a Tuberculose variou muito, desde pacientes que possuíam conhecimentos básicos sobre a doença a outros que não tinham qualquer noção sobre a mesma e a outros até que consideravam que a Tuberculose já se encontrava extinta. Por outro lado, em relação à COVID-19, todos os entrevistados tinham, pelo menos, noções básicas sobre a doença. Foi possível perceber que os conhecimentos e crenças prévios associados às doenças moldaram o momento da reação ao diagnóstico.

Atitudes em relação à doença

Alguns participantes referiram que pacientes com Tuberculose e/ou COVID-19 não deviam ser “postos à parte” e que a prestação de um apoio constante a estes doentes é essencial. Foi também reportado que o apoio dos familiares e amigos é um fator crucial para ajudar o paciente a enfrentar a doença, sendo que a maioria dos participantes disse ter sentido esse apoio por parte de familiares e amigos.

No que diz respeito à relação com os profissionais de saúde, importa referir que nenhum participante reportou qualquer tipo de discriminação sentida por parte destes profissionais. Pelo contrário, os participantes descreveram experiências positivas neste âmbito: “A equipa de profissionais de saúde que vinha a minha cada dar-me a medicação ajudou-me em todos os aspetos, ajudaram-me a levar o lixo para a rua até…” (Participante homem, 35 anos, infetada com Tuberculose em 2008 e em 2021 e COVID-19 em 2019).

Já na esfera social, os relatos contrastam com o que até agora descrevemos. Alguns participantes disseram não ter sentido qualquer tipo de apoio no meio social envolvente e, pelo contrário, sentiram-se excluídos. “Eu acho que as pessoas fugiam de nós… eu acho. Eu pensava isso e era o que sentia.” (Participante mulher, 58 anos, infetada com COVID-19 em 2020).

Conhecimento e educação

Quando questionados sobre como definiriam estigma, a maioria falou sobre o que sentiu em relação à sua doença e assumiu que o acesso a uma melhor educação e a mais informação sobre estas doenças seria muito importante para ajudar a reduzi-lo. “Estigma é as pessoas fugirem de nós. Ou colocarem-nos a um canto. Eu acho que são o medo e a falta de conhecimento que levam as pessoas a agirem assim. Elas ficam longe dos que estão doentes.” (Participante mulher, 58 anos, infetada com COVID-19 em 2020).

Estigma internalizado

Alguns participantes disseram ter sentido vergonha quando foram diagnosticados com a doença, o que conduziu a um quadro de autorrejeição. “Eu culpei-me por tudo o que estava a acontecer. Fui sobretudo eu a estigmatizar o que me estava a acontecer, não os outros. Eu acho que a autorrejeição é um bocado inevitável.”  (Participante mulher, 25 anos, infetada com COVID-19 e Tuberculose em 2020). Esta mesma participante, salientou um outro ponto interessante, ao estabelecer uma comparação entre a Tuberculose e a COVID-19: “Apesar de a Tuberculose e a COVID-19 serem ambas doenças que se espalharam por todo o mundo, dizer COVID-19 e dizer Tuberculose tem um peso completamente diferente. A palavra “Tuberculose” tem uma conotação muito, muito pesada, que gera estigma.”

Apesar de alguns participantes terem considerado que era importante falar abertamente da doença, sem esconder nada, outros mostraram-se relutantes em falar sobre esse diagnóstico. “Às vezes, era mais chique dizer que tinha uma infeção pulmonar em vez de dizer que tinha Tuberculose”. (Participante homem, 35 anos, infetada com Tuberculose em 2008 e em 2021 e COVID-19 em 2019).

Mesmo quando já não estavam em risco de infetar outras pessoas, alguns dos participantes contaram que permaneceram isolados, essencialmente, da família e dos amigos, sobretudo dos mais novos, por pânico de transmitirem a doença.

Estigma experienciado

Os participantes que partilharam o seu diagnóstico receberam diferentes reações. Contudo, a maioria indicou que os familiares, amigos e colegas de trabalho aceitaram bem. Em contraste, disseram também que as interações sociais, enquanto estavam infetados, foram muito difíceis. A rejeição social contribuiu muito para a experiência negativa que os participantes viveram, nomeadamente através de episódios de rejeição e discriminação que, mesmo esporádicos, tiveram um impacto muito negativo na sua confiança e no sentimento de identidade. “Uma amiga veio ter comigo porque eu tinha feito uma lista de compras para lhe dar e eu reparei… Passei-lhe a lista pela janela e percebi… parecia que ela se estava a afastar. Eu acho que as pessoas tinham medo da proximidade… mesmo com máscaras, nós estávamos a usar máscaras! Eu coloquei luvas, não toquei em nada diretamente, nem na lista quando a estava a escrever. E estava tudo desinfetado, mas senti isso.” (Participante mulher, 58 anos, infetada com COVID-19 em 2020).

Estigma antecipado

Quando estavam infetados com COVID-19 ou Tuberculose, muitos participantes disseram ter sentido receio de serem estigmatizados, o que os levou a alterarem os seus comportamentos. Alguns deles admitiram ter escondido o diagnóstico ou evitado falar sobre a doença em público ou em certas situações, por vergonha. “No sítio onde vivo, houve muita gente que nunca soube que estive infetada, porque eu tinha a certeza da reação que iam ter… estive muito tempo sem ir lá, não queria aparecer com máscara… eu sei que há muita falta de informação”. (Participante mulher, 48 anos, infetada com Tuberculose em 2020).

Estigma percebido

Neste caso, o estigma percebido refere-se à demonstração de sentimentos de julgamento para com os outros. Alguns participantes reportaram que “as pessoas perguntavam… Eu evitava falar (…) As pessoas aqui no prédio achavam estranho as enfermeiras as virem cá todos os dias, mas eu só comentei com um ou dois vizinhos. Eu não falava muito para evitar a vergonha.” (Participante mulher, 48 anos, infetada com Tuberculose em 2020).

Importa referir que pensamentos como este provocam, muitas vezes, cenários de stress elevado, que podem conduzir a comportamentos muito negativos, como o isolamento social, por exemplo, que, por sua vez, irá contribuir para aumentar ainda mais o estigma percebido.

Evolução temporal do estigma

Apesar de se verificar uma redução do estigma associado à Tuberculose com o passar dos anos – também por influência da pandemia de COVID-19 e da pseudo-normalização das infeções respiratórias infeciosas – ainda olhamos para a Tuberculose como uma doença que gera estigma. No caso da COVID-19, à medida que a pandemia foi avançando, foi também diminuindo o preconceito em relação à infeção. Os relatos dos participantes que tiveram ambas as doenças mostram que estes encararam a COVID-19 com maior naturalidade.

Muitos participantes disseram também que notaram diferenças no estigma e nos comportamentos antes e depois da pandemia. Um dos tópicos mais referidos foi o facto de a pandemia ter vindo “normalizar” medidas de etiqueta respiratória, como a utilização da máscara, por exemplo, que antes, para doentes infetados com Tuberculose, causavam desconforto social. “Para mim foi um pouco complicado, eu não estava habituado a andar de máscara; atualmente, é completamente normal, mas antes era muito difícil para mim, não vou dizer o contrário.” (Participante homem, 42 anos, infetado com Tuberculose em 2019).

Quando foi pedido aos participantes que deixassem as suas sugestões para combater o estigma, foram apresentadas diversas propostas: disseminação de informação nas escolas, através de sessões educacionais para diferentes idades, organização de encontros para partilha de testemunhos de pessoas que já estiveram infetadas ou até mesmo ter pacientes infetados a partilhar o seu diagnóstico abertamente. Uma participante mulher, de 25 anos, infetada com COVID-19 e Tuberculose em 2020, fez uma analogia interessante a este respeito, defendendo que devem ser os próprios doentes a dar a conhecer a doença: “É mais fácil serem as pessoas que tiveram que viver com a doença a explicá-la aos outros do que os profissionais de saúde… Tem mais impacto quando ouvimos um testemunho da 2.ª Guerra Mundial do que quando lemos “O Diário de Anne Frank”.

Combater o estigma é crucial para controlar a doença

Com base na análise qualitativa dos testemunhos partilhados por estes nove participantes, os investigadores concluíram que a destigmatização das doenças respiratórias infeciosas é essencial para reduzir os casos de ausência ou demora do diagnóstico e para diminuir a transmissão e a discriminação face à doença. Uma sociedade mais informada e mais consciente sobre estas doenças irá diminuir o estigma face às mesmas, como nos provou a pandemia de COVID-19. Neste caso, a ampla disseminação de informação e conhecimentos sobre a doença permitiu reduzir rapidamente o estigma que, numa fase inicial, lhe estava associado. No caso da Tuberculose, por sua vez, existem ainda muitas barreiras que sustentam um estigma profundamente enraizado e que, por isso mesmo, precisa de ser trabalhado e desconstruído com urgência.

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