Em 2021, uma equipa de investigadores do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), em parceria com a Sociedade Portuguesa de Reumatologia e com o INESC TEC – Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência, propôs-se a estudar a forma como os adolescentes vivem e relatam a dor física na transição para a vida adulta. Cerca de três anos depois, as conclusões do projeto SEPIA mostram que a forma como crianças e adolescentes percecionam a dor é determinante para a sua qualidade de vida física e mental na idade adulta.
O projeto SEPIA (acrónimo para a designação em inglês “Studying Experiences of Pain In Adolescents”) – financiado pela fundação europeia FOREUM – Foundation for Research in Rheumatology – surgiu com o objetivo de identificar características-chave da dor física durante a adolescência que permitissem prever o risco de desenvolver dor musculosquelética crónica na transição para a vida adulta.
“Pensa-se que a forma como vivemos a dor desde as primeiras décadas de vida é fundamental para desenhar as experiências de dor que sentimos ao longo de toda a vida. Saber quem são as pessoas com maior risco ajuda-nos a perceber como prevenir o aparecimento ou o agravamento da dor crónica (com duração superior a 3 meses). Em termos de saúde pública, isto é importante porque a dor musculoesquelética crónica é a principal causa de incapacidade no mundo”, adianta Raquel Lucas, investigadora do ISPUP e coordenadora do Projeto SEPIA.
Para responderem à principal questão científica deste projeto – que contou com pacientes parceiros de investigação em todas as suas fases, desde a conceção do estudo até à publicação dos resultados – os investigadores envolveram cerca de 5000 participantes, mais de 2000 jovens com idades entre os 14 e os 18 anos e os seus cuidadores. Estes jovens foram recrutados através da coorte de base populacional Geração XXI e do Registo Nacional de Doentes Reumáticos, o Reuma.pt, que acompanha jovens com Artrite Idiopática Juvenil (AIJ).
A recolha de dados iniciou em junho de 2022, através de uma app para dispositivos móveis, desenvolvida especificamente para o SEPIA, por uma equipa do INESC TEC. Os jovens e os seus cuidadores foram convidados a instalar a app e a responder a questionários que incluíam perguntas sobre vários aspetos relacionados com a dor. Além disso, a equipa de investigação utilizou dados dos participantes da coorte Geração XXI, recolhidos nas avaliações dos 7, dos 10 e dos 13 anos e, posteriormente, dados recolhidos também na avaliação dos 18 anos, que arrancou em 2023 e que ainda está a decorrer.
Crianças vítimas de bullying têm 70% mais probabilidade de vir a desenvolver condições dolorosas na transição para a vida adulta
Ao olhar para os dados recolhidos nas diferentes fases da vida dos participantes, verificou-se que as experiências adversas na infância (como o divórcio dos pais, as dificuldades financeiras, as mudanças de casa/escola, entre outras) podem aumentar significativamente o risco de desenvolver condições dolorosas ao longo da vida.
Um outro exemplo é o das crianças que foram vítimas de bullying até aos 10 anos de idade, que manifestaram perfis de dor adversos aos 13 anos, tanto nos relatos que fizeram como na sua resposta física aos testes de tolerância à dor. O estudo mostrou que uma criança vítima de bullying tem 70% mais probabilidade de vir a sentir dor grave (aquela que impede o desempenho de atividades quotidianas, como ir à escola ou participar em atividades de lazer) na adolescência.
Mas mesmo na ausência de experiências de adversidade, o estudo mostra que a dor é uma experiência muito comum já na infância, com uma em cada seis crianças a revelar ter dor com duração superior a 3 meses, tanto aos 7 como aos 10 anos. Quando olhamos para as consequências a curto prazo, o estudo mostrou que uma em cada oito destas crianças tinham sentido uma dor suficientemente grave para as levar a faltarem à escola ou a alguma atividade de lazer.
Nos cuidados de saúde é, por vezes, necessário avaliar a dor pediátrica através dos cuidadores. Este estudo permitiu verificar que os pais têm tendência para subestimar a dor dos filhos, especialmente em casos de dor múltipla (em diferentes partes do corpo) e de alta intensidade. Apesar disso, os relatos dos pais sobre a dor que os filhos sentem na infância são indicadores importantes: 66% das raparigas cujos pais/cuidadores reportaram ter dor repetitiva ou frequente aos 7 e aos 10 anos, reportaram dor aos 13 anos e o mesmo aconteceu para 53% dos rapazes.
No caso dos pais/cuidadores de crianças com Artrite Idiopática Juvenil, constatou-se que os pais lembram e reportam mais a dor dos filhos que está tipicamente relacionada com a doença articular (por exemplo nos joelhos e mãos) e que, por outro lado, não mencionam tanto outras dores que são muito comuns, mas de causas geralmente desconhecidas (como dor de costas, de cabeça ou de barriga), às quais os filhos, nos seus relatos, dão mais importância.
Os questionários revelaram várias limitações na avaliação quantitativa da dor. Por isso, a equipa de investigação recorreu a um Teste Sensorial Quantitativo (QST), que mede a resposta à pressão física com base num equipamento computorizado. Este produz uma pressão padronizada, igual para todos os participantes, que permite caracterizar de modo seguro a sensibilidade à dor numa fase crucial para o desenvolvimento de trajetórias de dor crónica. Observou-se que adolescentes com histórico de dor musculoesquelética desde a infância apresentam menor tolerância à estimulação por pressão, o que sugere que a exposição prolongada à dor na infância pode aumentar a sensibilidade à dor na adolescência.
Ao olhar para as diferenças entre rapazes e raparigas, verificou-se que, nas raparigas, a tolerância à dor se mantém praticamente igual com a puberdade. Por outro lado, no caso dos rapazes, a tolerância à dor aumenta 20% nesta etapa. Estes resultados podem ajudar a explicar uma observação bem conhecida na investigação sobre a dor, em variados contextos geográficos e de saúde: as mulheres adultas reportam mais dor que os homens.
Foi ainda possível constatar que, nas raparigas, há uma relação estatística entre o Índice de Massa Corporal (IMC) aos 10 anos e a dor reportada na adolescência, aos 13 e aos 17 anos: quanto maior o IMC, maior o risco futuro de dor musculoesquelética. Esta relação pode ser explicada por motivos mecânicos ou bioquímicos, mas também pode ser causada por fatores psicossociais: foi possível observar que quanto menor a satisfação do adolescente com a sua imagem corporal, menor a sua tolerância à dor no teste QST.
Quanto à localização da dor reportada, constatou-se que crianças que se queixavam de dor abdominal/pélvica entre os 7 e os 10 anos tiveram maior probabilidade de ter dor recorrente nessa e noutras partes do corpo, aos 13 anos, nomeadamente dor musculoesquelética. Aos 17 anos verificou-se um aumento da prevalência de relatos de dor, nomeadamente de dor musculoesquelética crónica e múltipla, tanto nos rapazes como nas raparigas. Percebeu-se também que ter um histórico de dor musculoesquelética crónica ou múltipla aos 13 anos está diretamente associado a uma menor qualidade de vida quatro anos mais tarde.
Forma como os jovens percecionam a dor é determinante para a formação do seu bem-estar ao longo de toda a vida
Os resultados do estudo destacaram as implicações da dor na infância a longo prazo e a importância da perceção da dor na formação do bem-estar futuro.
“Todos conhecemos pessoas que raramente se queixam de dores mesmo que nos pareça que têm doença ou lesão grave. Por outro lado, há pessoas que se queixam de muita dor quando têm uma doença que nos parece ligeira. Ou seja, independentemente da gravidade, o mesmo problema físico pode causar níveis de sofrimento muito diferentes em diferentes pessoas. Por isso, hoje a dor é entendida como uma experiência individual e subjetiva, que resulta das nossas doenças físicas, mas também da interação destas com o nosso contexto psíquico e social. Este projeto ajuda-nos a mostrar que o mundo que nos rodeia enquanto crianças influencia de modo relevante a dor futura.”, acrescenta a investigadora Raquel Lucas.
O SEPIA permitiu, assim, caracterizar a frequência e o impacto da dor pediátrica, que ocorre – e muitas vezes permanece – fora dos cuidados de saúde. Possibilitou também a identificação de fatores que, desde cedo, podem ser usados por decisores e profissionais de saúde – incluindo em âmbito escolar e no contexto familiar – para sinalizar crianças que terão maior risco de viver experiências adversas de dor musculoesquelética. Esta estratificação poderá contribuir para uma gestão precoce da dor pediátrica de modo a prevenir a sua transformação em dor crónica.
Em termos de saúde pública, o projeto informa possíveis áreas de atuação de políticas que se destinem a mitigar o impacto dos contextos adversos para o surgimento e a persistência da dor, como é o caso da adversidade social, que parece interagir com os fatores biológicos para piorar as experiências de dor física.
Os resultados do SEPIA foram oficialmente apresentados esta manhã, no auditório do ISPUP, num evento que contou com a presença da equipa de investigadores do ISPUP, das instituições parceiras, de alguns participantes do estudo e de um conjunto de convidados externos que comentaram estes resultados e suas implicações.