Mais de metade dos estudantes com sintomas depressivos moderados e graves não procuraram ajuda durante a pandemia

De que forma a pandemia de COVID-19 afetou a saúde mental dos estudantes universitários e influenciou as interações sociais dos jovens e a sua experiência com o ensino online? Um estudo do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) procurou responder à questão, usando uma amostra de estudantes da Universidade do Porto.

A investigação longitudinal, que decorreu ao longo de 18 meses, concluiu que a satisfação dos estudantes relativamente ao ensino à distância e à forma de interação social diminuíram com a pandemia, e que o número e a gravidade dos sintomas depressivos aumentaram significativamente entre outubro de 2019 (período pré pandemia) e março de 2021 (momento do segundo confinamento em Portugal, devido à COVID-19). Verificou-se, no entanto, que este aumento da sintomatologia depressiva moderada e grave, não se traduziu num comportamento de maior procura de ajuda por parte destes jovens

Como explica Ricardo Gusmão, investigador sénior do ISPUP, professor de Saúde Mental na FMUP, e coordenador do laboratório Literacia em saúde mental, bem-estar, depressão e prevenção do suicídio, do Laboratório associado para a Investigação Integrativa e Translacional em Saúde Populacional (ITR), “a pandemia de COVID-19 teve um enorme impacto na vida dos cidadãos. Em Portugal, tal como na maioria dos países, vivenciámos inúmeras restrições que limitaram as interações sociais, e que impuseram alterações aos nossos estilos de vida. Estas mudanças afetaram todos sem exceção, nomeadamente os estudantes universitários, grupo etário em que a incidência de doenças mentais, em particular a depressão, é muito superior a qualquer outro grupo populacional, e que por isso é considerado um grupo de risco”. 

“As medidas restritivas que conduziram ao encerramento das universidades, a introdução do ensino online e a limitação das interações sociais afetaram a saúde mental deste grupo etário. Estudos realizados anteriormente descreveram o aumento do medo, da preocupação e do stress entre os estudantes. Ora, isto é esperado em qualquer situação de crise, não contém nada de inesperado ou novo, sendo que a enorme maioria destas situações individuais carece de promoção do bem-estar e não de acompanhamento clínico especializado. No nosso estudo, ao contrário da maioria das investigações publicadas, olhámos para aqueles estudantes que apresentavam sintomatologia expressiva, moderada a grave e muito grave, sendo, portanto, muito sugestiva de alto-risco para perturbações de ansiedade e de depressão. Por outro lado, quase todos os trabalhos que têm sido realizados, ou são transversais ou tiveram início após a pandemia, não tendo acompanhado esta população ao longo do tempo e antes do início da pandemia”, explica.

Ricardo Gusmão sublinha que o artigo do ISPUP inova por ser longitudinal e por ter sido iniciado antes da pandemia de COVID-19. “Foi uma oportunidade. A investigação teve início antes do deflagrar da pandemia, e acompanhou os estudantes da Universidade do Porto ao longo do tempo, até ao momento do segundo confinamento, o que nos permitiu extrair elos causais robustos”, acrescenta.

Com este estudo, os investigadores pretenderam, por um lado, avaliar o impacto do confinamento imposto pela COVID-19 na trajetória dos sintomas moderados e graves de perturbações de ansiedade e de depressão dos estudantes universitários, analisando a evolução desta sintomatologia ao longo da pandemia; compreender qual o nível de satisfação dos estudantes para com o ensino online, o contentamento relativamente às suas interações sociais e as alterações registadas nos padrões de sono.

Mas o objetivo principal foi estudar os efeitos da pandemia no comportamento de procura de ajuda e acesso aos cuidados de saúde por parte dos jovens que apresentavam níveis de sintomatologia moderada a grave, evidenciadora de uma clara necessidade de cuidados. 

O desenho do estudo

Foram incluídos no trabalho 366 estudantes que se encontravam a frequentar o primeiro ano de uma qualquer licenciatura da Universidade do Porto, algo também considerado inovador, dado que a maioria das investigações neste domínio se foca sobretudo em alunos das áreas da saúde.

Os participantes responderam a um questionário de autoavaliação online em três momentos – outubro de 2019, junho de 2020 e março de 2021 – perfazendo um período de acompanhamento de 18 meses. Foi possível recolher informação de natureza sociodemográfica sobre os jovens, incluindo a existência de cuidados de saúde mental anteriores, o seu nível de satisfação para com o ensino online e o nível de contentamento relativamente às interações sociais. Em 2020 e 2021, perguntou-se, adicionalmente, se os estudantes conheciam alguém que contraiu a COVID-19 ou se eles mesmos estiveram infetados com o vírus.  

Os sintomas de ansiedade e de depressão foram avaliados, usando as versões portuguesas dos questionários PHQ-9 (para a sintomatologia depressiva) e GAD-7 (para sintomas de ansiedade).

Ricardo Gusmão faz notar que “estes instrumentos não permitem estabelecer o diagnóstico de depressão ou ansiedade (doenças), mas sim a presença e a gravidade de sintomas destas patologias, permitindo a atribuição de uma pontuação. Infelizmente, a profusão de estudos que têm surgido sobre o impacto da pandemia de COVID-19 na ‘saúde mental’ apresentam frequentemente uma qualidade metodológica e conceptual insatisfatória, muitas vezes por inadequação dos instrumentos de avaliação em relação à população em análise, e por irrelevância dos resultados, os quais não permitem apurar necessidades em ‘saúde mental’ que possam ser correspondidas numa perspetiva de saúde publica.”

“No nosso estudo, foram utilizados instrumentos adequados para medir a sintomatologia depressiva e ansiosa nesta população, através de um inquérito online. O ponto de corte utilizado para a definição de caso corresponde a uma probabilidade elevadíssima de apanhar estudantes com ausência de ‘saúde mental’ e que carecem de intervenção.”, explica.

Os resultados

A maioria dos 366 participantes na investigação tinham uma média de idades de 22 anos e eram mulheres (71,3%). 

Num período inicial, houve um aumento dos sintomas de ansiedade, que depois se mantiveram constantes. No entanto, entre outubro de 2019 e março de 2021, verificou-se uma subida significativa dos sintomas de depressão nesta amostra. Em 2021, quase metade dos estudantes apresentaram sintomas de depressão moderada a grave. 

O nível de satisfação para com o ensino online diminuiu, embora não significativamente, e a satisfação para com as interações sociais decresceu de forma considerável, entre 2020 e 2021. De realçar que os participantes com maior gravidade de sintomas de depressão e de ansiedade revelaram maior descontentamento para com o formato de ensino online do que os alunos com menos sintomas. 

Em consonância com o que já tinha sido descrito em estudos anteriores, a maioria dos estudantes reportou dormir menos horas e deitar-se mais tarde do que antes do início da pandemia. 

De sublinhar que, apesar do aumento significativo da sintomatologia clínica associada à depressão, não houve, por parte dos alunos, uma maior procura de ajuda profissional. Aliás, mais de 50% dos jovens com sintomas de depressão ou de ansiedade moderada ou grave não recorreram a tratamento durante a pandemia.

Para Ricardo Gusmão, estes resultados não são animadores. “Percebemos, com este estudo, que estes estudantes com níveis significativos de sintomas, sugestivos de doença ativa, que tendiam a não procurar ajuda antes da pandemia, com o deflagrar da COVID-19 e com o isolamento, passaram a procurar ainda menos o apoio de profissionais”.

Atendendo aos resultados encontrados no artigo, o investigador sublinha que “são necessárias intervenções que promovam o bem-estar e a resiliência na Academia e que previnam as doenças mentais. Mas, em simultâneo, é necessário ter mecanismos de prevenção secundária eficazes para ajudar os que estão em efetivo sofrimento, doentes, e que se encontram em risco, não só de insucesso escolar, mas também de atentar contra a própria vida”.

“Diria que é urgente aumentar, de forma sustentável, a literacia em saúde mental na Academia, nomeadamente, a literacia de alunos, docentes e restante pessoal académico, para que todos saibam identificar as situações que carecem de avaliação especializada e as intervenções que são adequadas, sendo igualmente crucial apostar em sistemas de referenciação para serviços que correspondam às necessidades e que dêem as respostas necessárias aos problemas identificados”, remata. 

O artigo, designado The Association Between Changes in the University Educational Setting and Peer Relationships: Effects in Students’ Depressive Symptoms During the COVID-19 Pandemic, teve também como primeira autora a estudante de doutoramento Virgínia Conceição (membro do ISPUP e ITR), e Inês Rothes (Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e Centro de Psicologia da U.Porto). 

Este trabalho foi financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), ao abrigo do projeto UIDB/04750/2020.

Imagem: Redd/Unplash

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