Projeto do ISPUP e da OMS avalia comida de rua nos países da Ásia Central e da Europa de Leste

Oprojeto FEEDCities, que resulta de uma parceria entre o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) Europa, juntamente com outras unidades orgânicas da Universidade do Porto, procurou estudar o ambiente urbano de comida de rua em cidades de diversos países da Ásia Central e da Europa de Leste.

O que é a comida de rua

De acordo com a definição da OMS, a comida de rua é caracterizada como “alimentos e bebidas prontos a comer preparados e/ou vendidos por vendedores ambulantes, especialmente nas ruas e outros locais semelhantes”. Este tipo de alimentos, vendidos fora de quatro paredes, tem uma especial relevância nos países analisados, que podem ser classificados como países de baixo e médio rendimento.

Como explica Sofia Sousa, uma das investigadoras do ISPUP envolvidas no projeto, “a comida de rua é habitualmente mais prevalente e relevante nos países de baixo e médio rendimento, e tem uma importância não só cultural e gastronómica, mas também económica, para muitas famílias destas regiões”.

Nos países da Ásia Central e da Europa de Leste, assiste-se, atualmente, a uma subida acentuada do número de doenças não transmissíveis crónicas, como as doenças cardiovasculares e o cancro. Paralelamente, com a crescente globalização, estas regiões têm passado por uma transição nutricional, caracterizada pela substituição gradual dos padrões alimentares tradicionais por padrões mais globalizados, através da diminuição do consumo de fruta, produtos hortícolas, leguminosas e cereais integrais, e do aumento do consumo de alimentos de origem animal e processados, tendencialmente mais densos energeticamente e mais ricos em gordura, açúcar e sódio.

Tendo em conta a importância da alimentação no surgimento e progressão das doenças não transmissíveis, tornou-se importante para os investigadores colmatar a falta de informação acerca dos hábitos alimentares e nutricionais das populações destes países.

“Percebemos que nestas regiões existe uma lacuna muito grande no que diz respeito a investigações sobre ingestão alimentar e composição nutricional dos alimentos que estão disponíveis para estas populações, por isso, achámos que seria relevante conduzir este estudo”, refere Sofia Sousa.

Sete cidades avaliadas

Os investigadores estudaram o ambiente urbano de comida de rua em sete cidades da Ásia Central e da Europa de Leste: Dushanbe (Tajiquistão), Bishkek (Quirguistão), Chișin ău (Moldávia), Sarajevo e Banja Luka (Bósnia e Herzegovina), Almaty (Cazaquistão) e Ashgabat (Turquemenistão). Está neste momento a iniciar-se a implementação em Tbilisi (Geórgia).

Especificamente, avaliaram os locais de venda e os alimentos prontos a consumir nestes centros urbanos, caracterizaram os compradores e as suas compras e avaliaram a composição nutricional dos produtos vendidos, levando em conta o seu teor energético e de macronutrientes, quantidade de sódio e de potássio, e o perfil lipídico de cada alimento.

No projeto, os investigadores do ISPUP contaram com a colaboração de inquiridores locais, bem como com o auxílio de agências da OMS e Institutos de Saúde Pública em cada país, de vários consultores da OMS, e de outros parceiros envolvidos no estudo.

Os resultados

Em todas as cidades estudadas, os investigadores encontraram uma grande diversidade de alimentos e bebidas, e verificou-se a coexistência de produtos locais, como por exemplo bebidas fermentadas e pratos tradicionais, com produtos ocidentalizados, como bolachas e batatas fritas industriais. A elevada disponibilidade de refrigerantes e a baixa disponibilidade de frutas e de vegetais nestes pontos de venda foi outro resultado comum a todas as cidades avaliadas.

Relativamente ao perfil nutricional dos alimentos disponibilizados, verificou-se que estes apresentaram, no geral, um perfil pouco saudável, com elevados teores de gordura, em especial gordura saturada e trans, e um conteúdo elevado de sódio, como se pode verificar em dois dos vários estudos publicados no âmbito do projeto: “The Sodium and Potassium Content of the Most Commonly Available Street Foods in Tajikistan and Kyrgyzstan in the Context of the FEEDCities Project” e “Street food in Eastern Europe: a perspective from an urban environment in Moldova.”

Dos alimentos selecionados para análise nutricional, constatou-se que alguns produtos industriais, como os wafers e o chocolate, tinham altos conteúdos de gorduras saturadas e trans. No entanto, também alguns alimentos tradicionais e caseiros, como os pastéis salgados e produtos de pastelaria, tinham frequentemente um alto teor destes ácidos gordos, o que, de acordo com a investigadora do ISPUP, “poderá ser o reflexo da adoção, por parte dos vendedores, de práticas culinárias menos saudáveis, como o uso frequente de gorduras de menor qualidade nutricional na confeção destes alimentos, associado muitas vezes à fritura”.

No geral, as principais fontes de sódio foram encontradas nos alimentos caseiros, especialmente nos pratos principais à base de carne, e nos pastéis e snacks salgados, o que poderá indicar a utilização excessiva de sal e/ou de ingredientes ricos em sódio.

Mais recentemente, dois estudos que caracterizaram os compradores de comida de rua nestas regiões – A Cross-Sectional Study of the Street Foods Purchased by Customers in Urban Areas of Central Asia e Nutritional Content of Street Food and Takeaway Food Purchased in Urban Bosnia and Herzegovina -, mostraram que os homens e os compradores com excesso de peso ou obesidade tenderam a realizar compras com um perfil nutricional menos favorável, geralmente com valores superiores de gorduras saturadas e trans, bem como de sódio.

Uma outra investigação desenvolvida ao abrigo do projeto, intitulada The Price of Homemade Street Food in Central Asia and Eastern Europe: Is There a Relation with Its Nutritional Value?, mostrou que os alimentos caseiros vendidos em contexto de comida de rua apresentaram um baixo custo: 1$ (dólar americano) por porção. Os alimentos tradicionais, de origem local, foram significativamente mais baratos do que os alimentos de origem ocidentalizada. “O facto de os pratos locais apresentarem um custo menor é uma boa notícia, uma vez que estes assumem um papel importantíssimo na preservação gastronómica e cultural. Estes resultados preconizam a necessidade de melhorar a qualidade nutricional destes alimentos, promovendo-os enquanto opções alimentares económicas para a população”, acrescenta a investigadora do ISPUP.

Um projeto inovador

Sofia Sousa destaca a componente inovadora deste projeto, pelo seu enfoque na qualidade nutricional da comida de rua nos países de baixo e médio rendimento, algo que não é visto regularmente na literatura. “Até à implementação deste estudo, a evidência científica disponível sobre comida de rua estava essencialmente relacionada com a higiene e a segurança alimentar nos locais de venda. O projeto FEEDCities inovou, ao estudar a composição nutricional dos alimentos, a disponibilidade, o consumo e o preço dos mesmos”, diz.

Paralelamente, a metodologia utilizada, baseada em procedimentos sistematizados e estandardizados, deu origem a dados que podem ser comparáveis entre diferentes cidades/países. “Esta metodologia, criada especialmente para este projeto, tem ainda a vantagem de ser adaptável às especificidades de cada ambiente alimentar a estudar”, indica.

Espera-se que os conhecimentos gerados no contexto do FEEDCities tenham o potencial de abrir precedentes para o avanço de novos esforços de investigação na área da nutrição e saúde pública, nestes países.

De igual modo, com os resultados alcançados, os investigadores pretendem a criação de intervenções adaptadas ao contexto de comida de rua nestas cidades, garantindo o desenho de políticas que visem a melhoria do perfil nutricional e do custo dos alimentos vendidos nestes locais.

“Estes dados realçam um conjunto de prioridades de atuação que deve ser multissetorial, envolvendo os principais atores destes ambientes alimentares, que, neste caso, são os vendedores e os consumidores. Os vendedores, através do incentivo à utilização de ingredientes nutricionalmente mais interessantes, e à sensibilização para práticas culinárias mais saudáveis. Os consumidores, através da educação e da capacitação dos mesmos para a prática de escolhas alimentares mais adequadas”.

 “É ainda importante alargar as medidas a outros intervenientes do sistema alimentar que poderão influenciar a disponibilidade, o custo e a qualidade nutricional dos alimentos vendidos nestes locais, como, por exemplo, a indústria alimentar, através da reformulação dos produtos industriais, no sentido de melhorar o perfil nutricional dos mesmos, ou através de outras ações governamentais multissectoriais, envolvendo os ministérios da saúde, agricultura ou economia”.

O objetivo final? A prevenção de doenças não transmissíveis crónicas relacionadas com a alimentação e a melhoria do estado nutricional e de saúde dos habitantes destas cidades.

O protocolo do projeto FEEDCities project: A comprehensive characterization of the street food environment in cities, está disponível aqui.

Os investigadores Nuno Lunet, Gabriela Albuquerque, Susana Casal, Patrícia Padrão e Pedro Moreira, da Unidade de Investigação em Epidemiologia (EPIUnit) do ISPUP, também participaram no projeto, que contou com a colaboração de mais três unidades orgânicas da Universidade do Porto: a Faculdade de Medicina, a Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação e a Faculdade de Farmácia.

O projeto FEEDCities é financiado pela Organização Mundial de Saúde (WHO registo 2015/591370-0 e 2017/698514) e pelo Ministério da Saúde da Federação Russa.

Pode ainda ver
Artigos relacionados