O projeto financiado pelo Horizonte 2020, no qual participaram 20 instituições, de 12 países, procurou compreender os fatores de risco associados à prematuridade, através da análise combinada de dados de um número bastante alargado de indivíduos que nasceram pré-termo na Europa e que têm vindo a ser seguidos, ao longo de vários anos, no âmbito de estudos de coorte.
O Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) e o Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC-TEC) estiveram envolvidos no desenvolvimento do projeto europeu RECAP preterm – Research on European Children and Adults born Preterm.
Financiado pelo programa Horizonte 2020 com 9 milhões e 700 mil euros, durante quatro anos (de 2017 a 2021), o RECAP contribuiu para que seja cada vez melhor compreendida a forma de garantir mais saúde e mais qualidade de vida a crianças e adultos nascidos muito pré-termo (menos de 32 semanas de gestação) ou com muito baixo peso (menos de 1500g), particularmente na Europa.
Embora os nascimentos muito pré-termo ou de muito baixo peso constituam menos de 2% de todos os nascimentos na Europa, eles são responsáveis por metade das mortes perinatais e infantis no continente. As crianças que nascem pré-termo têm um risco acrescido de desenvolver anomalias neurológicas, comportamentais ou de personalidade, assim como problemas cardiovasculares e metabólicos, em comparação com as que nascem a termo. Estes bebés apresentam também maior risco de desenvolver doenças crónicas não transmissíveis à medida que envelhecem e de terem menos oportunidades de emprego na vida adulta.
O RECAP preterm contribuiu para a compreensão das circunstâncias que originam nascimentos pré-termo e para o modo de as modificar, através do desenvolvimento da Plataforma de Coortes RECAP preterm – um sistema de armazenamento, processamento, catalogação e análise de dados, sustentável, geograficamente diverso e multidisciplinar de 20 coortes europeias de crianças e adultos que nasceram muito pré-termo.
Uma coorte corresponde a um grupo de indivíduos que partilham uma característica e que são seguidos ao longo do tempo, tradicionalmente através de questionários e avaliações presenciais, para melhor compreender a evolução da sua saúde. Esta recolha de dados fornece informação essencial para a investigação em epidemiologia e saúde pública.
Existem, em vários países da Europa, estudos de coorte de pessoas que nasceram muito pré-termo ou com muito baixo peso. Contudo, estes estudos isolados são demasiado pequenos para permitir análises mais complexas, como determinar a eficácia dos tratamentos neonatais ou descobrir o que ajuda estes indivíduos a terem uma vida sem complicações.
Ao combinar dados de coortes europeias, que seguem, desde há vários anos, crianças que nasceram muito pré-termo ou com muito baixo peso até à idade adulta, a Plataforma de Coortes RECAP preterm permite, por exemplo, aumentar o poder de análise estatística e identificar fatores universais que podem ajudar a melhorar a vida destas pessoas, em vários países.
A plataforma, desenvolvida com o contributo do INESC TEC, e que continua ativa mesmo após o término do projeto, conta com milhares de dados, que estão distribuídos por uma rede de 14 servidores na Europa, o que permite a médicos e investigadores conduzirem estudos, utilizando uma fonte de dados com uma elevada abrangência geográfica e cultural.
Ao harmonizar e combinar estes dados, a RECAP Preterm “permite contribuir para analisar, por exemplo, o desenvolvimento de doenças raras ou a evolução no cuidado e na sobrevivência das pessoas nascidas muito pré-termo”, refere Artur Rocha, investigador no INESC TEC.
Além do mais, “esta infraestrutura serve de base para inúmeras publicações científicas que estão a ser desenvolvidas no âmbito de estudos acerca de nascimentos muito pré-termo e de muito baixo peso de crianças e adultos”, adianta.
A plataforma permite a análise estatística federada de dados localizados em repositórios de países distintos, sem que para isso seja necessária a transmissão dos dados a terceiros. As análises são feitas distribuída e paralelamente em cada um dos repositórios, tendo o analista apenas acesso a dados agregados que permitem, ainda assim, obter os mesmos resultados estatísticos que seriam obtidos se os dados se encontrassem fisicamente juntos no mesmo repositório.
Atualmente, esta abordagem federada está cada vez mais em uso, particularmente em análises estatísticas com recurso a técnicas de Machine Learning.
Mas esta importante base de dados, só existe graças ao contributo dos participantes que aceitam voluntariamente fazer parte destes estudos longitudinais, ajudando a Ciência de forma altruísta.
No entanto, manter a sua participação é um desafio. A perda de participantes nestes estudos, devido tanto à indisponibilidade para responderem a questionários como para marcarem presença em avaliações periódicas presenciais, é uma das preocupações dos investigadores.
No projeto RECAP preterm, os investigadores do ISPUP estiveram particularmente envolvidos na forma de motivar a adesão das pessoas nascidas muito pré-termo ou com muito baixo peso a estes estudos longitudinais, bem como na análise de formas de melhorar a recolha de dados e garantir o acompanhamento dos participantes ao longo do tempo.
A aposta em soluções de acompanhamento digital e de monitorização remota dos participantes foi uma das possibilidades testadas para motivar os indivíduos a permanecerem nos estudos de coorte. Estas soluções são benéficas não só para os participantes, que evitam deslocações, mas também para os investigadores, que não necessitam de construir estruturas dispendiosas para efetuar as várias avaliações de seguimento.
Em colaboração com o INESC TEC e outros parceiros, o ISPUP testou duas soluções: uma aplicação para dispositivos móveis – a RECAP_MY Life – um meio de recolha de dados aplicado na área da saúde móvel (mhealth), e a criação de uma e-coorte internacional – a HAPP-e (Health of Adult People born Preterm – an e-cohort pilot study).
Em particular, a e-coorte HAPP-e demonstrou que existe um enorme potencial para realizar avaliações de seguimento dos participantes de forma exclusiva, usando o meio online.
A e-coorte foi lançada em dezembro de 2019 pelos investigadores do ISPUP e do INESC TEC. Todos os adultos nascidos pré-termo, a nível mundial, podiam participar no estudo, respondendo a questionários online, na plataforma do projeto.
Desde que foi lançada até dezembro de 2020, a HAPP-e contou com a participação de uma amostra significativa de adultos nascidos pré-termo, provenientes de 34 países, cobrindo uma ampla variedade de características sociodemográficas e de saúde.
Segundo Henrique Barros, Presidente do ISPUP, envolvido no projeto RECAP, “este estudo piloto confirmou um grande potencial para o recrutamento de uma extensa e diversa amostra de adultos nascidos pré-termo em todo o mundo, trazendo assim avanços na investigação sobre este segmento da população. Paralelamente, permitiu perceber que esta é uma modalidade eficaz para captar participantes para os estudos de coorte, algo que é essencial para a aplicação de medidas concretas de saúde pública”.
No seguimento da construção da plataforma RECAP preterm, surgiu a ideia de facilitar e promover a interligação dos dados sobre saúde e educação dos participantes das coortes com os registos de nascimentos prematuros de hospitais, Serviço Nacional de Saúde, escolas, Ministério da Saúde e da Educação, entre outras instituições que recolhem dados sobre prematuridade.
Este processo de record linkage a nível europeu foi bastante incentivado pelo ISPUP, dada a mais-valia que representa para a área da investigação. A interligação de um grande volume de dados permite responder a variadíssimas questões que, de outro modo, não seria viável.
No entanto, para efetivar este processo, é necessário ultrapassar algumas barreiras legais, relacionadas com a proteção e a privacidade dos dados das pessoas cuja informação é partilhada. Na União Europeia, Estados-membros, como Portugal, atribuem uma grande importância à autodeterminação da informação e ao consentimento explícito dos indivíduos que facultam os dados, o que torna difícil a sua partilha entre as várias instituições.
Os investigadores do ISPUP entendem que a harmonização das regras relacionadas com a privacidade e a proteção de dados, na União Europeia e no Espaço Económico Europeu, poderia ser útil para facilitar o processo de record linkage. Contudo, sublinham que esta harmonização não deve ser prejudicial para os países que já permitem esta troca de dados sem consentimento explícito, em prol da investigação e do bem comum.
Mesmo após o término do projeto, os investigadores pretendem continuar a potenciar o processo de record linkage, o qual pode ser aplicado não só ao estudo da prematuridade, mas também à investigação em outras áreas como a COVID-19 e doenças crónicas. Esta abordagem multidisciplinar será incentivada pelo ISPUP, de forma a melhorar a investigação e a otimizar políticas de saúde.
A plataforma RECAP preterm vai continuar ativa. Espera-se que, no longo prazo, venha a servir de modelo para o desenvolvimento de recursos semelhantes para a investigação em coortes populacionais fora do âmbito da prematuridade.
O projeto RECAP preterm terminou em setembro de 2021, quatro anos após ter iniciado. As reuniões finais do projeto aconteceram nos dias 28 e 29 de setembro, de forma online.
Para além do ISPUP e do INESC TEC, participaram também no RECAP preterm o TNO (Países Baixos), a Universidade de Warwick (Reino Unido), o INSERM (França), a Universidade de Leicester (Reino Unido), o THL (Finlândia), o EFCNI (Alemanha), a Norwegian Univeristy of Science and Technology (Noruega), a University Hospital of Bonn children’s Hospital (Alemanha), o Instituto Karolinska (Suécia), a Universidade de Helsínquia (Finlândia), o Pediatric Hospital Bambino Gesù, IRCC (Itália), o hospital Amager Og Hvidovre (Dinamarca), a Philipps University Marburg (Alemanha), a University of Tartu (Estónia), a Concentris Research Management (Alemanha), a Extensive Life Oy (Finlâncida) e a Stichting MLC Foundation (Países Baixos).
Para mais informações sobre o RECAP preterm, consulte o website.