Em fevereiro de 2022 foram divulgados os primeiros resultados do projeto Improving MAternal Newborn CarE in the EURO Region – IMAGINE EURO, que pretendia avaliar a qualidade dos cuidados materno-infantis, durante a pandemia de Covid-19, em 20 países da Europa e no qual o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) participou, coordenando a recolha e análise de dados, em Portugal.
Cerca de um ano depois, o International Journal of Gynecology and Obstetrics publica, agora, um suplemento totalmente dedicado à análise detalhada destes cuidados em cada um dos países envolvidos. O estudo “Regional differences in the quality of maternal and neonatal care during the COVID-19 pandemic in Portugal: Results from the IMAGINE EURO study” é inteiramente dedicado à realidade portuguesa, descrevendo diferenças entre regiões.
Este é o primeiro estudo a utilizar os indicadores de qualidade da Organização Mundial da Saúde (OMS) para avaliar diferenças regionais, na perspetiva das mulheres, na qualidade dos cuidados materno-infantis prestados no momento do parto, nas instituições de saúde portuguesas, durante a pandemia de Covid-19. Como referência para este estudo, foi adotada a divisão NUTS 2: Região Norte, Centro, Área Metropolitana de Lisboa, Alentejo, Algarve, Região Autónoma da Madeira e Região Autónoma dos Açores.
Foram identificadas grandes assimetrias regionais, sugerindo que, entre 2020 e 2021, existia uma grande variabilidade na qualidade dos cuidados materno-infantis prestados no nosso país.
A garantia da qualidade dos cuidados materno-infantis é fundamental numa perspetiva de saúde pública. A redução da qualidade de cuidados prestados pelos serviços de saúde pode ter implicações negativas para a saúde mental e física das mulheres e dos recém-nascidos.
A pandemia colocou novos desafios aos sistemas de saúde a nível global e nacional, incluindo uma maior dificuldade em assegurar a qualidade de cuidados materno-infantis.
No presente estudo, procurou-se avaliar a perceção das mães relativamente à qualidade dos cuidados materno-infantis em quatro parâmetros distintos: os cuidados prestados, a experiência e perceção da mulher sobre os cuidados que recebeu, a disponibilidade de recursos físicos e humanos nos serviços hospitalares e a capacidade de reorganização dos serviços no contexto da pandemia de COVID-19.
Para cumprir este objetivo, os investigadores elaboraram um questionário, disponibilizado em formato online, em mais de 20 idiomas, e dirigido a mulheres que tiveram um parto, entre março de 2020 e outubro de 2021. Para a realidade nacional, foram consideradas as respostas de 1845 mulheres, maiores de 18 anos, residentes em Portugal continental ou nas ilhas. Este questionário está ainda disponível para todas as mulheres que queiram colaborar no estudo.
O inquérito foi elaborado com base numa lista de Normas, preparadas pela OMS, em 2016, para melhorar a qualidade dos cuidados hospitalares prestados às mães e aos recém-nascidos.
Importa ainda referir que os questionários foram realizados dividindo as mulheres em dois grupos: as que experienciaram trabalho de parto e as que não experienciaram trabalho de parto, uma vez que “as mulheres que passam pelo trabalho de parto experienciam um conjunto de práticas que as que não passam não experienciam, portanto, o questionário teve de ser adaptado mediante estas diferenças”, explica Raquel Costa, investigadora do ISPUP, responsável pela coordenação do projeto IMAGINE EURO em Portugal, e coordenadora do laboratório Saúde Mental Perinatal e Pediátrica, do Laboratório associado para a Investigação Integrativa e Translacional em Saúde Populacional (ITR), coordenado pelo ISPUP..
Em Portugal, a informação disponível sobre a qualidade dos cuidados materno-infantis é extremamente escassa, levando, em 2021, à emissão de uma Resolução por parte da Assembleia da República que expressa a necessidade de eliminar as práticas de violência obstétrica no país e realizar estudos anónimos para avaliar os cuidados prestados em saúde materno-infantil, especificamente com a indicação de averiguar a prevalência dessas práticas no país.
De acordo com os dados recolhidos, um terço das mulheres que tiveram um parto numa unidade hospitalar portuguesa entre março de 2020 e outubro de 2021 foram submetidas a cesariana.
Olhando para as mulheres que passaram por trabalho de parto, 30,8% tiveram um parto vaginal instrumentado, com variação entre os 22,3% registados na região do Algarve e 33,5%, na região Centro. A Manobra de Kristeller (aplicação de pressão externa sobre o útero)foi realizada em 49,7% dos casos de parto vaginal instrumentado, sendo a percentagem mais baixa registada de 34,8%, em Lisboa, e a mais alta de 66,7%, no Centro.
Em 39,3% das mulheres com parto vaginal não instrumentado foi realizada uma episiotomia (incisão feita no períneo para ampliar o canal de parto), tendo a percentagem mais elevada sido registada no Centro do país, em 59,8% dos casos; a percentagem mais baixa observou-se no Norte, fixando-se nos 31,8%.
Importa ainda destacar que um quarto destas mulheres reportou ter tido um apoio inadequado à amamentação (19,4%, a percentagem mais baixa foi registada no Algarve e 31,5%, a mais alta, em Lisboa). 22% das mulheres não estariam a amamentar exclusivamente, aquando da sua alta hospitalar (com variações entre os 19,5% em Lisboa e os 28,2% no Algarve).
“Estas diferenças tão acentuadas dificilmente estarão relacionadas com as necessidades das mulheres, mas sim com a cultura de cada instituição hospitalar”, alerta Raquel Costa.
Entre os indicadores recolhidos para avaliar a perceção das mulheres sobre a sua experiência de parto as mulheres que passaram por trabalho de parto, 38,1% das mulheres sentiram falta de apoio emocional durante o parto (com variações percentuais entre 28,7% no Norte e 51,1% no Centro), 31,9% sentiram que não foram tratadas com dignidade (26,9% no Norte e 45,1% no Centro) e 23,3% sentiram que foram vítimas de algum tipo de abuso físico, verbal ou emocional (17,8% no Norte e, no pior cenário, 32,2% no Centro). Mais ainda, 66,2% das mulheres sentiram limitações impostas à presença de um acompanhante à sua escolha, no momento do parto, com a percentagem mais baixa a ser registada em Lisboa, 56,2% e a mais alta no Centro, 88,4%.
No universo das mulheres que experienciaram um parto vaginal não-instrumentado, a maioria, 64%, afirma não lhe ter sido permitida a escolha da posição do parto, verificando-se uma discrepância muito evidente entre o Norte, com 54,1% e o Centro, com 80,3%. Entre as mulheres com parto vaginal instrumentado, a 62,2% não foi pedido consentimento para a utilização de instrumentos (variando entre 52,3% no Norte e 78,3% no Algarve).
Perante a realidade observada neste estudo, os investigadores envolvidos alertam para a necessidade urgente de serem tomadas medidas que promovam o respeito pelos direitos das mulheres e dos recém-nascidos. Existem no nosso país exemplos de cuidados de saúde materno-infantis com elevada qualidade, que importa serem reproduzidos e expandidos de forma a mitigar a ocorrência de situações de desrespeito e abuso, bem como as desigualdades no acesso a cuidados de saúde de qualidade. Para se obter uma visão mais completa deste panorama, está neste momento disponível um questionário dirigido aos profissionais de saúde, cuja visão é também fundamental para a compreensão desta temática.
Neste recém-publicado suplemento do estudo reforça-se ainda a necessidade de continuar a monitorizar estes indicadores de qualidade dos cuidados prestados aquando do nascimento, no sentido de perceber se as dificuldades observadas persistem além do cenário de pandemia de COVID-19. Para além disso, reforça-se também a importância de priorizar o investimento nas instituições de prestação de cuidados de saúde materno-infantil e nos seus profissionais de saúde para promover a excelência nos cuidados prestados.
Com o projeto IMAGINE EURO, pretendeu-se ajudar a identificar lacunas e a planear uma resposta coordenada entre os vários países para melhorar a qualidade dos cuidados prestados às mães e aos recém-nascidos. O objetivo deste trabalho é também o de divulgar os resultados junto das entidades de saúde, para que estas consigam agir de forma informada, com vista a alcançar a visão da OMS: “todas as mulheres grávidas e recém-nascidos devem receber cuidados de qualidade durante a gravidez, o parto e o pós-parto.”
Em Portugal, além do ISPUP, são parceiros do IMAGINE EURO a ARS Algarve, a Universidade Europeia e a Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e no Parto.