Há um número significativo de crianças nascidas extremamente prematuras (antes das 28 semanas de gestação), que apresentam, aos cincos anos de idade, problemas motores e que não estão a receber tratamento, por não terem um diagnóstico formal.
Esta é uma das conclusões de um estudo internacional, no qual o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) participou, e que comparou os cuidados prestados a crianças nascidas extremamente prematuras entre vários países europeus, incluindo Portugal.
A investigação, publicada na revista científica Developmental Medicine & Child Neurology, foi realizada a partir dos dados do projeto europeu EPICE-SHIPS, que acompanha, até hoje,um conjunto de crianças que nasceram muito prematuras, nos anos de 2011 e 2012, em 11 países europeus.
O artigo agora publicado envolveu 807 crianças europeias que nasceram antes das 28 semanas de gestação.
O objetivo? Determinar qual a proporção de crianças que apresentava problemas motores, incluindo paralisia cerebral, aos cinco anos, como consequência da extrema prematuridade, e averiguar quantas destas é que tinham recebido cuidados de saúde especificamente associados aos seus problemas motores.
Através de um questionário preenchido pelos pais, no momento em que as crianças completaram cinco anos, os investigadores recolheram informação sobre características familiares, estado de saúde das crianças, e utilização de cuidados de saúde devido a problemas motores.
Adicionalmente, uma equipa de terapeutas e psicólogos levou a cabo uma avaliação à função motora dos participantes.
E o que se concluiu? Das 807 crianças avaliadas, 21% estavam em risco de problemas motores, cerca de 25% tinham problemas motores clinicamente significativos e 11.4% paralisia cerebral.
A investigação concluiu que a maioria (quase 90%) das crianças diagnosticadas formalmente com paralisia cerebral estava a receber tratamento. No entanto, apenas 43% das que tinham problemas motores clinicamente significativos, não formalmente diagnosticados, estavam a ser tratadas, e só um quarto das que se encontravam em risco de problemas motores estavam a receber tratamento adequado.
Concluiu-se também que quando a criança apresenta exclusivamente um problema motor, ou seja, sem ter em simultâneo outros problemas de desenvolvimento, comportamentais ou emocionais, a probabilidade de receber tratamento diminui.
Para Raquel Costa, investigadora do ISPUP, primeira autora do artigo, e coordenadora do laboratório Saúde Mental Perinatal e Pediátrica, do Laboratório associado para a Investigação Integrativa e Translacional em Saúde Populacional (ITR), “estes resultados mostram claramente que existe uma desproporcionalidade considerável na prestação de cuidados a crianças que têm um diagnóstico de paralisia cerebral e entre aquelas que não têm um diagnóstico formal de problemas motores”.
O que poderá explicar esta disparidade na prestação de cuidados de saúde? A investigadora do ISPUP e os restantes autores do estudo elencam algumas hipóteses.
Por um lado, existe o desconhecimento dos pais. “Alguns problemas motores menos graves que afetam estas crianças são por vezes negligenciados, sobretudo se não causarem um grande impacto no dia-a-dia da criança, nomeadamente no seu estado emocional, nem nas dinâmicas familiares. Além disso, há que ter em conta as condições socioeconómicas das famílias, que nem sempre permitem uma deslocação ao médico, se o problema não for grave”, indica Raquel Costa.
Por outro lado, os próprios profissionais de saúde, ao não possuírem guidelines específicas para o acompanhamento destas crianças, podem subestimar os seus problemas motores, impedindo um diagnóstico atempado.
Os autores encontraram diferenças na forma como os países europeus participantes no projeto SHIPS estão a seguir e a tratar as crianças com problemas motores clinicamente significativos. Apesar de o estudo referir que 43% destas crianças receberam tratamento, esta percentagem variou de país para país.
Há países em que a prestação de cuidados se situou nos 23% e outros em que rondou os 60%.
Vejamos alguns exemplos. Comparando França, Portugal, Itália e Reino Unido, observam-se diferenças significativas na prestação de cuidados.
Em Franca e Portugal as crianças com problemas motores clinicamente significativos apresentaram uma proporção mais alta de acompanhamento, ao passo que, em Itália e no Reino Unido, o tratamento prestado a estas crianças foi menor.
Segundo Raquel Costa, a ausência de guidelines internacionais de acompanhamento destas crianças, pode explicar esta variabilidade.
“França e Portugal são países que estão a providenciar mais suporte e mais tratamento para os problemas motores das crianças. Ambas as guidelines francesas e portuguesas preveem o follow-up ou acompanhamento das crianças nascidas muito prematuras, até aos cinco anos de idade”, refere a investigadora.
“Já os países sem guidelines ou com orientações pouco estruturadas asseguram, por norma, um acompanhamento com menor duração, normalmente até aos dois anos de idade. Ora, até aos dois anos alguns problemas motores não são passíveis de ser detetados porque a criança ainda se encontra em desenvolvimento. Assim, os protocolos de seguimento terminam antes do problema motor se manifestar”, acrescenta.
Há ainda a hipótese de alguns países realizarem um acompanhamento para lá dos dois anos, mas os protocolos não incluírem a função motora como parte da avaliação. “O facto de termos verificado neste estudo que há maior probabilidade de uma criança receber cuidados motores se tiver problemas emocionais ou comportamentais associados, é um indicador de que não é atribuída a importância devida à função motora. Ora, esta abordagem é problemática, porque a função motora é muito importante e encontra-se associada a outros problemas de desenvolvimento das crianças”, frisa.
Este estudo demonstra que existe uma lacuna na prestação de cuidados de saúde e que “é preciso ter em consideração as crianças que, não tendo um diagnóstico claro de paralisia cerebral, têm problemas motores significativos e precisam de atenção médica, pois não estão a receber os tratamentos devidos para os seus problemas motores. É aqui que está o maior gap em termos de prestação de cuidados de saúde e, por isso, é preciso agir”, frisa Raquel Costa.
A investigadora reforça também a necessidade de alertar os serviços de saúde para a importância da realização de avaliações clínicas do desenvolvimento da criança na sua globalidade, para que se aumente o reconhecimento destes problemas e se melhore a intervenção especializada nas populações de alto risco.
Recentemente, foram publicados standards europeus para o follow-up de crianças nascidas muito prematuras que poderão, futuramente, ajudar a melhorar o reconhecimento e o tratamento das suas condições de saúde.
Este estudo, intitulado Motor-related health care for 5-year-old children born extremely preterm with movement impairments, é também assinado por Henrique Barros e conta com a participação de investigadores vindos de França, da Suécia, da Bélgica, da Alemanha, de Itália, da Estónia, dos Países Baixos e do Reino Unido.
A investigação foi financiada pelo 7º Programa-Quadro da União Europeia ([FP7/2007-2013]; acordo nº 259882) e pela Comissão Europeia – Horizonte 2020 [acordo nº 633724].
Imagem: Unsplash/ Tuva Mathilde Løland