Os primeiros resultados do projeto Improving MAternal Newborn CarE in the EURO Region – IMAGINE EURO, no qual o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) participa, foram publicados na prestigiada revista científica The Lancet Regional Health – Europe.
O artigo desenvolvido no âmbito deste projeto europeu, que procurou recolher dados sobre a preparação, qualidade e resiliência dos serviços de saúde materno-infantis, em países da Região Europeia da Organização Mundial da Saúde (OMS), durante a pandemia de COVID-19, mostrou, por exemplo, que entre março de 2020 e 2021, a percentagem de mulheres portuguesas com partos eutócicos, submetidas a episiotomias – um procedimento não recomendado pela OMS – correspondeu ao dobro da percentagem dos países Europeus incluídos no estudo, e que a manobra de Kristeller (outra prática não recomendada) foi realizada em 49% das mulheres portuguesas que deram à luz por parto instrumentado.
A investigação demonstrou também que mais de 40% das portuguesas experienciaram dificuldades em aceder às consultas de rotina pré-natais e que mais de um terço consideraram existir uma comunicação inadequada por parte dos profissionais de saúde sobre os possíveis riscos da COVID-19 durante a gravidez.
A garantia da qualidade dos cuidados materno-infantis é fundamental numa perspetiva de saúde pública. A redução da qualidade de cuidados prestados pelos serviços de saúde pode ter implicações para a saúde mental e física das mulheres e dos recém-nascidos.
A pandemia apresentou um acréscimo de desafios aos sistemas de saúde a nível global, incluindo uma maior dificuldade em assegurar a qualidade de cuidados materno-infantis.
Com esta investigação, “pretendeu-se traçar um retrato europeu do nível de cuidados disponibilizados às mães durante este período”, explica Raquel Costa, investigadora do ISPUP, responsável pela coordenação do projeto IMAGINE EURO em Portugal, e coordenadora do laboratório Saúde Mental Perinatal e Pediátrica, do Laboratório associado para a Investigação Integrativa e Translacional em Saúde Populacional (ITR), coordenado pelo ISPUP.
“Este trabalho foi igualmente realizado para entender o grau de preparação que estes serviços têm para atender às necessidades específicas da COVID-19”, acrescenta.
Para cumprir este objetivo, os investigadores elaboraram um questionário, disponibilizado em formato online, em mais de 20 idiomas, e dirigido a mulheres que tiveram um parto, após março de 2020. Este questionário está ainda disponível para todas as mulheres que queiram colaborar no estudo.
Procurou-se avaliar a perceção das mães relativamente à qualidade dos cuidados materno-infantis em quatro parâmetros distintos: os cuidados prestados, a experiência de cada mulher quanto aos cuidados recebidos, a disponibilidade de recursos físicos e humanos nos serviços hospitalares, e a capacidade de reorganização dos serviços mediante a pandemia de COVID-19.
O inquérito foi elaborado com base numa lista de Normas, preparadas pela OMS, em 2016, para ajudar a melhorar a qualidade dos cuidados hospitalares prestados às mães e aos recém-nascidos.
Foram avaliadas as respostas de um total de 21 027 mulheres em vários países europeus, sendo 1 685 delas mulheres portuguesas, que representaram a quinta maior amostra do estudo.
Os questionários foram realizados dividindo as mulheres em dois grupos: as que experienciaram trabalho de parto (18 063) e as que não tiveram trabalho de parto (2 964).
“As mulheres que passam pelo trabalho de parto experienciam um conjunto de práticas que as que não passam não experienciam, portanto, o questionário teve de ser adaptado mediante estas diferenças”, clarifica Raquel Costa.
Os resultados foram, depois, comparados entre os diferentes países participantes no estudo.
Quanto aos indicadores mais significativos para a avaliação da qualidade de cuidados materno-infantis em mulheres que tiveram trabalho de parto, 31% das mulheres portuguesas auscultadas revelaram ter tido um parto vaginal instrumentado, ou seja, um parto em que foram utilizados fórceps ou ventosas para facilitar a expulsão do feto, em comparação com uma média europeia de 11%.
A percentagem da realização de episiotomias, incisões feitas no períneo para ampliar o canal de parto, em partos eutócicos (partos vaginais sem recurso a instrumentos) fixou-se nos 41%, em Portugal, contrastando com uma média entre os países participantes de 20%. Esta prática é, atualmente, não recomendada pela OMS.
A manobra de Kristeller, outra prática não recomendada pela OMS, que consiste na aplicação de pressão externa sobre o útero, foi realizada em 41% das mulheres com partos vaginais instrumentados nos países em estudo, subindo esta percentagem para os 49% em Portugal.
Já o contacto pele-a-pele, um procedimento realizado imediatamente após o parto, em que o recém-nascido é colocado sobre o peito da mãe, e que comporta benefícios para o bebé ao nível da prevenção da hipotermia e promoção da amamentação (sendo uma prática importante e recomendada pela OMS), não foi realizado em 9% das mulheres que passaram por trabalho de parto nos países europeus em estudo, durante a pandemia, tendo esta percentagem subido para os 17%, no caso português.
Em Portugal, uma em cada quatro mulheres (26%) consideraram ter recebido apoio inadequado à amamentação por parte dos serviços de saúde, e 22% não estariam a amamentar exclusivamente aquando da sua alta hospitalar.
Das mulheres portuguesas que deram à luz por cesariana, 32% tiveram de realizar uma cesariana de emergência antes do trabalho de parto, em linha com a percentagem europeia.
O contacto pele-a-pele não foi realizado em 35% das mulheres europeias que tiveram um parto por cesariana, descendo para 30% no caso das portuguesas. No que diz respeito ao apoio à amamentação, a nível europeu, 37% das mulheres com parto por cesariana consideraram o apoio inadequado, enquanto que, a nível nacional, o número desceu para os 26%.
Relativamente à experiência quanto aos cuidados recebidos durante o parto, 43% das mulheres com parto eutócico, a nível europeu, revelaram não ter tido opção de escolha da posição para o parto, número que sobe para os 65% em Portugal.
63% das portuguesas indicaram não lhes ter sido pedido qualquer consentimento para a realização do parto instrumentado, valor que contrasta com uma média de 54%, considerando todos os países participantes.
Em Portugal, 28% das mulheres revelaram existir uma comunicação ineficaz por parte dos profissionais de saúde e 41% disseram não ter tido envolvimento nas escolhas durante o parto. 32% referiram não ter sido tratadas com dignidade, e 39% não ter recebido apoio emocional. 23% das mulheres reportaram mesmo ter sido vítimas de abusos físicos, verbais ou emocionais durante o parto, por parte de profissionais de saúde.
No caso das mulheres que não experienciaram trabalho de parto, 37% consideraram não ter tido envolvimento nas escolhas, 26% não ter sido tratadas com dignidade, 30% não ter tido apoio emocional, e 17% ter sofrido abusos físicos, verbais ou emocionais.
Relativamente à disponibilidade de recursos físicos e humanos, 29% das portuguesas que experienciaram trabalho de parto indicaram não ter recebido informação acerca de possíveis sinais de perigo maternos durante o parto, e 45% referiram não ter recebido esta informação relativamente aos recém-nascidos.
Quanto às horas de visitas por parte dos parceiros, a nível europeu, 62% revelaram considerar as horas de visita inadequadas, subindo este valor para 67% em Portugal. Das mulheres portuguesas que deram à luz por cesariana, 56% consideraram as horas de visita inadequadas.
Os impactos da pandemia de COVID-19 foram sentidos, principalmente, na diminuição das consultas de rotina ao longo da gravidez e na escassez de cuidados materno-infantis durante o período pandémico.
Os investigadores envolvidos no projeto destacam a importância deste estudo tanto a nível europeu, como a nível nacional, devido à escassez de informação sobre a qualidade de cuidados materno-infantis.
Uma das limitações do estudo poderá prender-se com o facto de a amostra global de mulheres que participaram na investigação terem uma escolaridade elevada, comparativamente com o nível educacional que é esperado na população em geral, e, consequentemente, estarem mais preparadas para expressar de um modo mais crítico a sua perspetiva sobre os cuidados prestados. Tal limitação decorre do facto de o questionário aplicado nos diferentes países ter assumido um formato online, por força da pandemia.
Assim, para se obter uma visão mais completa do panorama dos cuidados materno-infantis prestados durante a COVID-19, está neste momento disponível o questionário dirigido aos profissionais de saúde, cuja visão é fundamental para a compreensão desta temática.
Com o projeto IMAGINE EURO, pretendeu-se ajudar a identificar lacunas e a planear uma resposta coordenadaentre os vários países para melhorar a qualidade dos cuidados prestados às mães e aos recém-nascidos. Desta forma, os resultados apresentados serão, também, divulgados junto das entidades de saúde, para que estas consigam agir de forma informada, com vista a alcançar a visão da OMS: “todas as mulheres grávidas e recém-nascidos devem receber cuidados de qualidade durante a gravidez, o parto e o pós-parto.”
Em Portugal, os estudos conduzidos com o objetivo de avaliar os cuidados materno-infantis são extremamente escassos, levando, em 2021, à emissão de uma Resolução por parte da Assembleia da República que expressa a necessidade de avaliar os cuidados prestados em saúde materno-infantil, especificamente com a indicação de averiguar a prevalência de práticas de violência obstétrica no país.
O projeto internacional IMAGINE EURO é coordenado pelo Centro Colaborador da OMS para a Saúde Materno-Infantil de Trieste (Itália), sob a alçada de Marzia Lazzerini, e foi financiado por este centro.
O estudo, intitulado Quality of facility-based maternal and newborn care around the time of childbirth during the COVID-19 pandemic: online survey investigating maternal perspectives in 12 countries of the WHO European Region, contou com a participação de investigadores provenientes da Alemanha, Croácia, Eslovénia, Espanha, França, Itália, Luxemburgo, Noruega, Roménia, Sérvia e Suécia..
A imagem do projeto IMAGINE EURO foi selecionada para a capa da edição de fevereiro da revista The Lancet.
Em Portugal, para além do ISPUP, são parceiros do IMAGINE EURO a ARS Algarve, a Universidade Europeia e a Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e no Parto.