Chama-se Moza-BC acrónimo que resulta de Mozambican Breast Cancer – e é o primeiro estudo longitudinal de doentes com cancro da mama em Moçambique. Nasceu em 2015, pelas mãos dos três principais hospitais centrais de Moçambique (Maputo, Beira e Nampula) e do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), para ajudar a colmatar a falta de informação sobre a distribuição dos subtipos de cancro da mama, tratamentos disponíveis e números relativos à sobrevivência da doença no país.
262 mulheres moçambicanas, diagnosticadas com cancro da mama, entre 2015 e 2017, têm sido seguidas desde então pela equipa do estudo. Até agora, os investigadores perceberam, por exemplo, que quase um quarto das mulheres tem cancro da mama triplo negativo (o mais agressivo e letal), muitas são diagnosticadas num estádio avançado da doença e, três anos após o diagnóstico, metade das doentes já faleceu.
E, graças a um projeto da Fundação Calouste Gulbenkian, com o apoio da Cooperação Portuguesa, Fundação Millennium BCP e Millennium bim, foi possível criar, pela primeira vez em Moçambique, um grupo multidisciplinar para o cancro da mama no Hospital Central de Maputo, que revelou ter um impacto bastante benéfico na sobrevivência destas mulheres.
Como tudo começou
A criação da coorte remonta a 2014, ano em que o ISPUP iniciou uma colaboração com o Hospital Central de Maputo para a criação de um registo oncológico hospitalar e de um registo de base populacional para a cidade.
Na altura, Carla Carrilho, diretora do Serviço de Anatomia Patológica do Hospital Central de Maputo e responsável pelo registo oncológico do hospital, contactou o ISPUP, no sentido de se começar a estudar também melhor o cancro da mama.
O motivo? A informação existente sobre a doença em mulheres nativas africanas era muito escassa e, através da sua experiência empírica, a médica tinha a noção de que a incidência do cancro da mama estava a aumentar entre as mulheres de Moçambique.
Foi neste contexto que nasceu, em 2015, a coorte Moza-BC, como resultado de uma parceria entre o ISPUP, os três principais hospitais centrais de Moçambique (Maputo, Beira e Nampula) e a Faculdade de Medicina da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo.
Entre 2015 e 2017, várias mulheres que receberam o diagnóstico de cancro da mama num dos Serviços de Anatomia Patológica dos três principais hospitais de Moçambique foram convidadas a participar neste estudo prospetivo, desenhado com o objetivo de “conhecer os subtipos de cancro da mama mais frequentes entre as mulheres, os tratamentos disponíveis e a taxa de sobrevivência à doença”, explica Mariana Brandão, uma das investigadoras do ISPUP envolvidas na coorte, com Nuno Lunet.
Foram recrutadas 262 mulheres. Obteve-se informação crucial sobre as características das participantes, como por exemplo, a idade, números de filhos, a existência de comorbilidades como o VIH, o estadio da doença e os tratamentos recebidos (ex.: cirurgia, quimioterapia). Os dados relativos à sobrevivência destas mulheres estão a ser recolhidos através do registo oncológico do Hospital Central de Maputo.
Metade das mulheres diagnosticadas com cancro da mama faleceu
Desde há cerca de 20 anos que os investigadores começaram a perceber que o cancro da mama não deve ser considerado uma doença “única”, mas que é, na verdade, composto por vários “subtipos”, que têm características clínicas diferentes, e que levam a taxas de sobrevivência distintas. No entanto, a maior parte do conhecimento que existe sobre estes subtipos foi gerado nos Estados Unidos e na Europa.
O seguimento destas mulheres permitiu aos investigadores da Moza-BC responder a algumas das grandes questões que estiveram na origem da criação da coorte: qual a distribuição destes subtipos de cancro da mama em Moçambique e qual o seu impacto nos tratamentos e na sobrevivência das doentes.
Concluiu-se que há uma elevada proporção de doentes no país com os tumores HER2-positivo e triplo negativo (o mais agressivo e com o pior prognóstico). Concretamente, quase metade das doentes (49%) foi diagnosticada com estes dois subtipos e a outra metade com os tumores que são recetores hormonais positivos/HER2-negativo, cujo prognóstico é mais favorável.
Nos três anos após o diagnóstico da doença, quase metade das participantes na Moza-BC já faleceu. E a mortalidade foi mais alta entre as doentes com os tumores HER2-positivo e triplo negativo.
A baixa sobrevivência destas mulheres poderá explicar-se pela falta de opções diferenciadas de tratamento, nomeadamente, entre as doentes diagnosticadas com o subtipo HER2-positivo – um tipo de tumor bastante agressivo, mas que, graças ao desenvolvimento de medicamentos específicos, pode ser mais facilmente tratável.
“No caso das mulheres diagnosticas com o subtipo HER2-positivo, a ausência do medicamento trastuzumab compromete a sua sobrevivência. Por isso, o prognóstico deste subtipo de cancro da mama em Moçambique é bastante desfavorável comparativamente com países mais desenvolvidos, onde esse medicamento já é utilizado há vários anos”, explica Mariana Brandão, primeira autora do artigo designado Breast cancer subtypes: implications for the treatment and survival of patients in Africa—a prospective cohort study from Mozambique, que apresenta estes resultados.
Necessidade de otimizar o tratamento das doentes
Para aumentar a sobrevivência das doentes, os investigadores que participam neste estudo prospetivo sublinham a necessidade de melhorar o diagnóstico e otimizar o tratamento que é dirigido às pacientes nos hospitais, algo que não acontece em Moçambique.
No mesmo artigo, citado acima, destacam que o cancro da mama tem de deixar de ser encarado pelos clínicos como uma doença homogénea. É crucial que os médicos compreendam a importância de determinar qual o subtipo de cancro da mama antes de indicarem o tratamento à doente, uma vez que cada subtipo exige um tratamento diferenciado.
E os investigadores mostraram que é possível realizar o diagnóstico dos subtipos de cancro da mama em centros hospitalares com baixos recursos, como os de Moçambique, através de uma adaptação da técnica de punção aspirativa por agulha fina. “Trata-se de uma adaptação de um método de diagnóstico perfeitamente aplicável nos hospitais moçambicanos, mas também noutros países africanos. É um método simples e barato, em que não é necessário ter equipamento sofisticado, e que pode contribuir para a otimização dos tratamentos e, assim, para a sobrevivência destas mulheres”, refere a investigadora do ISPUP.
“Além disso, levaria à poupança de dinheiro mais à frente no percurso das doentes, ao evitar, por exemplo, a prescrição de terapêutica hormonal para as mulheres que não necessitam dela, ou então de quimioterapia para as doentes com tumores menos agressivos do ponto de vista biológico”.
A criação de uma consulta de grupo multidisciplinar para o cancro da mama
Outro dos grandes contributos da Moza-BC passou pela ajuda na criação de uma consulta de grupo multidisciplinar para o cancro da mama no Centro Hospitalar de Maputo, no ano de 2016, algo inédito em Moçambique.
Nessa altura, um grupo de profissionais de saúde do Hospital Central de Maputo tinha também ido receber formação a Portugal, ao abrigo do projeto “Atenção integrada ao doente oncológico”, promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian com o Ministério da Saúde de Moçambique, e que conta também com o cofinanciamento da Cooperação Portuguesa, da Fundação Millennium BCP e do Millennium bim. Quando regressaram, estes profissionais puderam implementar os conhecimentos aprendidos no Hospital, com as devidas adaptações locais, ajudando a criar o grupo multidisciplinar que iria acompanhar as doentes.
Este grupo, composto por elementos de diferentes áreas clínicas – cirurgia, radiologia, patologia, radioterapia e oncologia médica – tem a missão de reunir para avaliar individualmente cada paciente e decidir qual o tratamento mais adequado para a doente. O objetivo? Conseguir orientar melhor as mulheres durante o processo de diagnóstico e tratamento, e aumentar a sua sobrevivência.
Segundo Mariana Brandão, “a coorte Moza-BC e o programa de formação da Fundação Calouste Gulbenkian fizeram despertar nos profissionais de saúde moçambicanos a consciência de que era necessário criar uma consulta multidisciplinar para o cancro da mama. Tal nunca havia sido feito no país e, nesse sentido, fomos absolutamente inovadores. Queríamos perceber se a introdução de uma consulta conjunta, com elementos de diferentes áreas clínicas, ajudaria a obter melhores resultados em saúde no contexto Moçambicano”.
Ganhos na sobrevivência
E o que se concluiu? Que a introdução da consulta multidisciplinar em Maputo conseguiu obter ganhos efetivos para a prática clínica e para a sobrevivência das doentes.
Um artigo recentemente publicado pelo grupo de investigadores da coorte, designado Survival impact and cost-effectiveness of a multidisciplinary tumor board for breast cancer in Mozambique, Sub-Saharan Africa, mostrou que a implementação do grupo multidisciplinar conduziu a uma redução de 53% na mortalidade das mulheres.
Além disso, a sua implementação é exequível e custo-efetiva, algo crucial para hospitais onde os recursos são escassos, como é o caso dos de Moçambique.
“Estes resultados são igualmente importantes para o resto do mundo, dado que é a primeira vez que se demonstra que uma consulta de grupo multidisciplinar aumenta a sobrevivência das doentes com cancro da mama e é custo-efetiva, num país em desenvolvimento, com baixos recursos. Assim sendo, poderá ser um estímulo à implementação deste modelo noutros países de África e em outras regiões”, frisa a investigadora do ISPUP.
“Para além disso, este conhecimento pode igualmente ser útil para os países desenvolvidos, nos quais a disseminação das consultas de grupo multidisciplinar ainda não é total, e onde se começa também a questionar o seu benefício, uma vez que são reuniões que consomem tempo e dinheiro”, acrescenta.
O sucesso deste projeto conduziu ao reconhecimento formal da abordagem multidisciplinar como parte essencial do tratamento da doença oncológica no Plano de Controlo de Cancro de Moçambique 2019-2029 – o primeiro que existe no país para o controlo do cancro – e nas Recomendações Moçambicanas de Tratamento do Cancro da Mama.
Graças a esta primeira experiência positiva, foram já criados, no Hospital Central de Maputo, outros grupos multidisciplinares, nomeadamente, para o cancro ginecológico, da cabeça e pescoço, esófago e patologia torácica.
Implicações para a gestão do cancro da mama em Moçambique
A informação produzida no âmbito da coorte Moza-BC tem ajudado a colmatar a falta de dados sobre aspetos cruciais para a gestão do cancro da mama em Moçambique que, de acordo com o registo oncológico criado no Hospital Central de Maputo com a ajuda do ISPUP, é o segundo tipo de neoplasia com maior incidência entre as mulheres da capital moçambicana.
Através de outros trabalhos desenvolvidos no âmbito da coorte, os investigadores compreenderam quais são os fatores de risco para o desenvolvimento do cancro da mama em Moçambique e avaliaram o impacto da infeção por VIH nas características clínicas e na sobrevivência das mulheres com cancro da mama.
Os vários resultados alcançados até agora são pioneiros e pretendem servir de base para decisões clínicas e políticas em Moçambique e, eventualmente, também noutros países africanos.