Um estudo do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) sublinha a importância de se repensarem os critérios de elegibilidade definidos para a prescrição da profilaxia pré-exposição (PrEP) – uma forma de prevenção farmacológica do Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH) para pessoas em maior risco.
A investigação acompanhou um grupo de homens que têm sexo com homens sem VIH e verificou diferenças no número de novos casos de VIH, de acordo com os critérios de elegibilidade para a PrEP, usando quatro linhas orientadoras diferentes. Os autores defendem a adoção de uma estratégia de prescrição que contemple não só os critérios objetivos de risco para contrair a infeção, mas também as preferências e as necessidades dos indivíduos, como por exemplo, a antecipação de mudanças na vida sexual que resultem na prática de sexo menos seguro.
A profilaxia pré-exposição (PrEP) é indicada para pessoas que não têm VIH, mas que se encontram em maior risco de o vir a contrair.
Comparticipada desde 2018 pelo Serviço Nacional de Saúde, a PrEP existe atualmente em forma de comprimidos e tem demonstrado ser efetiva para a redução do VIH, principalmente quando há uma boa adesão à sua toma. A sua prescrição é realizada por um médico que avalia o risco de aquisição de infeção por VIH e de outras infeções sexualmente transmissíveis.
Segundo Paula Meireles, primeira autora da investigação, publicada na revista Eurosurveillance, e coordenada por Henrique Barros, “existem orientações de entidades nacionais e internacionais que auxiliam os clínicos a identificar quem está em maior risco de contrair o VIH, e, portanto, de ser elegível para a toma da PrEP”.
As orientações existentes incluem fatores de risco, associados a comportamentos conducentes à aquisição da infeção, como, por exemplo, a não utilização consistente do preservativo, ter relações sexuais com pessoas VIH positivas e com a carga viral não suprimida ou ter tido, recentemente, uma infeção sexualmente transmissível.
Mas não há uniformidade nestes critérios. Há linhas orientadoras que incluem, por exemplo, um maior número de fatores de risco. Na prática, uma mesma pessoa pode ser classificada de forma diferente consoante os critérios da guideline usada.
Num artigo anteriormente publicado na revista Sexuality Research and Social Policy, os investigadores do ISPUP mostraram precisamente que a proporção de homens que têm sexo com homens, considerados elegíveis para a PrEP, varia consoante os critérios usados. O estudo teve em consideração os critérios de elegibilidade da Organização Mundial da Saúde (OMS), do Centro de Controlo e Prevenção das Doenças dos Estados Unidos (US-CDC), da Sociedade Clínica Europeia para a Sida (EACS) e do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Na investigação agora publicada, os autores analisaram a capacidade dos critérios de elegibilidade da OMS, do US-CDC, da EACS e do SNS, em predizer o risco de contrair a infeção numa amostra de homens que têm sexo com homens sem VIH.
“Fomos perceber se ser elegível para tomar a PrEP, de acordo com as guidelines dessas quatro entidades, se associava, ao longo do tempo, a uma maior probabilidade de seroconverter, ou seja, de adquirir a infeção”, refere Paula Meireles.
A amostra
Avaliou-se 1254 indivíduos, inicialmente sem VIH, participantes na Coorte de Lisboa dos Homens que têm Sexo com Homens (Lisbon MSM Cohort), um estudo longitudinal português, iniciado em 2011, que acompanha homens que têm sexo com homens, que fazem o teste do VIH no CheckpointLX, um centro de base comunitária em Lisboa.
Os autores utilizaram os dados dos participantes da coorte, que realizaram a primeira avaliação e foram acompanhados, entre 2014 e 2018. Foi recolhida informação sobre o comportamento sexual dos participantes, o tipo de parceiros e relações sexuais praticadas, o estatuto serológico dos parceiros sexuais, o uso de antirretrovirais e carga viral, o uso de preservativo, o consumo de substâncias psicoativas, a existência de infeções sexualmente transmissíveis e o historial da profilaxia pré e pós-exposição.
Com base na informação obtida e nos critérios de elegibilidade das quatro entidades mencionadas, os homens foram classificados em elegíveis ou não elegíveis para a toma da PrEP. Seguidamente, analisou-se se ser classificado como elegível, de acordo com as guidelines, se associava a uma maior incidência de VIH, ao longo do tempo.
Incidência do VIH é superior entre os homens que são elegíveis para a toma da PrEP
E verificou-se que sim. “Percebemos que, de facto, ser considerado elegível para a toma desta ferramenta de prevenção se associou a uma maior incidência de VIH”, menciona a investigadora do ISPUP.
Dos 1254 participantes no estudo, 28 adquiriram a infeção. As linhas orientadoras das quatro entidades analisadas foram capazes de prever um elevado número de seroconversões na amostra em causa, mas houve diferenças entre elas.
Os critérios que melhor identificaram os homens que estavam em maior risco de contrair o VIH foram os do Serviço Nacional de Saúde Português. As linhas orientadoras portuguesas identificaram 85,7% das seroconversões que ocorreram, o que revela que as orientações definidas pelo SNS para a aquisição da PrEP são mais sensíveis em relação às outras.
Há espaço para melhorar
Mas há espaço para melhorar. Verificou-se que os indivíduos que inicialmente tinham sido classificados como não elegíveis para a toma da PrEP poderiam chegar até quase 40% dos que adquiriram o VIH. Segundo as guidelines, entendeu-se que não estariam em risco de contrair a infeção e, por isso, não lhes teria sido prescrita a PrEP.
Para evitar que pessoas que necessitem da PrEP fiquem dela privados, seria importante inserir outros fatores nas linhas orientadoras. Por exemplo, “o uso inconsistente do preservativo com parceiros com estatuto serológico para o VIH desconhecido foi apenas incluído nas linhas orientadoras portuguesas, ao passo que fatores psicossociais ou do nível populacional estão frequentemente ausentes”, aponta Paula Meireles.
Avaliar a necessidade de prescrição
Para travar novas infeções por VIH, seria aconselhável passar de uma estratégia meramente baseada na avaliação do risco (passado e atual), na qual se analisa se o indivíduo cumpre ou não os critérios de elegibilidade, para a avaliação das suas preferências e necessidades, numa lógica de gestão antecipada do risco (atual e futuro), defendem os autores.
“Se nos focarmos numa estratégia de prescrição da PrEP que contemple apenas os critérios de elegibilidade, há uma grande probabilidade de perdermos pessoas. Até porque há indivíduos que têm comportamentos que não encaixam exatamente num determinado critério e há também pessoas que, num dado momento, não são consideradas elegíveis, porque não têm um comportamento de risco, mas que no futuro podem vir a ter”, considera.
Entende-se assim que a decisão de prescrever a PrEP deve ser partilhada entre o médico e a pessoa que a ela quer aderir e que as linhas orientadoras devem incluir este aspeto.
Para a investigadora, “se um indivíduo entende que a toma de um comprimido, que depende só de si e não exige negociação com o parceiro, encaixa na sua estratégia de prevenção, não se deve perder esta oportunidade de lho prescrever. Achamos que a decisão de prescrição deve ser partilhada e mais adequada às necessidades, preferências e contexto de vida de quem vai usar a ferramenta”.
Mensagem de Saúde Pública
Os autores sublinham que a PrEP é uma ferramenta de prevenção comparticipada, que funciona, e que embora não seja destinada a todos, pode ser adequada a um grupo específico de indivíduos. Portanto, é mais um instrumento que temos disponível, para travar as infeções por VIH e parar com a transmissão.
O artigo designado Different guidelines for pre-exposure prophylaxis (PrEP) eligibility estimate HIV risk differently: an incidence study in a cohort of HIV-negative men who have sex with men, Portugal, 2014-2018. encontra-se disponível AQUI. Nele também participam Michael Plankey, Miguel Rocha, João Brito e Luís Mendão.
Imagem: Pexels/Anna Shvets