O estudo “A double-edged sword: Residents’ views on the health consequences of gentrification in Porto, Portugal” – desenvolvido por uma equipa de investigadores do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) e publicado recentemente no Social Science & Medicine Journal – alerta para as consequências, em boa parte negativas, para a saúde da gentrificação na cidade do Porto e chama a atenção dos órgãos de decisão locais e nacionais para a importância de serem desenhadas políticas que respondam aos desafios provocados pelas mudanças profundas que a cidade atravessa.
Estudos recentes sugerem que a gentrificação tem consequências para a saúde, uma vez que muda, muitas vezes de maneira profunda, o ambiente social, físico e económico em que as pessoas vivem. Em muitos casos, obriga mesmo as pessoas a procurar um novo lugar para viver, uma vez que a renovação do território faz aumentar o custo de vida e, particularmente, o da habitação. Todavia, essas consequências ainda não estão claramente identificadas e também não é ainda claro como é que estas duas realidades, gentrificação e saúde, se ligam entre si.
Tendo-se tornado muito atraente no panorama internacional – para turistas, estudantes, “nómadas digitais” e para investidores do mercado imobiliário – a cidade do Porto tem sido marcada, nos últimos anos, por processos de gentrificação.
Esta investigação procurou, assim, estudar a relação entre gentrificação e saúde, no Porto, a partir daquilo que as pessoas que vivem na cidade pensam, dizem e mostram sobre esta realidade. Para isso, os investigadores recorreram ao método photovoice, que, de forma simples, consiste em pedir a um grupo de pessoas que tire fotografias sobre um tema importante para a sua comunidade e que discuta em conjunto o que essas fotografias querem dizer, com o objetivo de conhecer a realidade, estimular uma maior consciência e envolvimento com a comunidade e promover a mudança.
Neste caso, foram selecionados 16 participantes voluntários da coorte EPIPorto. A sua seleção obedeceu a critérios geográficos: um primeiro grupo foi composto por pessoas de zonas onde a gentrificação é mais intensa, outro por residentes de zonas menos favorecidas, onde a gentrificação não é um fenómeno muito expressivo e, por último, um terceiro grupo que integrou moradores das zonas mais favorecidas da cidade, onde, por definição, a gentrificação também estará menos presente. Os participantes, por sua vez, aceitaram fotografar a cidade, procurando mostrar, através das suas fotografias, como os processos de gentrificação estão a mudar o Porto e, consequentemente, a vida e a saúde de quem habita a cidade.
A gentrificação pode provocar desenraizamento, estados emocionais negativos, vários problemas de saúde e, eventualmente, morte prematura.
A informação que estas pessoas forneceram através das suas fotografias e dos seus testemunhos foi objeto de uma análise intensiva por parte dos investigadores, que procuraram identificar, relacionar e agrupar tematicamente as situações descritas. Desse trabalho resultaram então seis temas que estabelecem uma relação entre a gentrificação e a saúde:
1. Aumento da “população flutuante”
“População flutuante” diz respeito a um conjunto de pessoas, como turistas ou estudantes, que se encontram temporariamente na cidade. Os participantes de estudo identificaram um aumento expressivo desta população, sobretudo dos turistas, fotografando, entre outros, turistas nas ruas, serviços para turistas, edifícios renovados para alojamento local e hotéis em construção. Indicaram que esta realidade poder trazer benefícios à cidade, como por exemplo a revitalização de algumas zonas ou até o crescimento económico, mas também malefícios, como a excessiva confusão e stress, o aumento do lixo e do barulho (incluindo à noite) e constrangimentos de mobilidade, entre outros, todos associados a pior saúde.
2. Falta de acesso à habitação e deslocamento
Os participantes de todos os grupos identificaram uma crescente dificuldade no acesso à habitação da população local. O preço da habitação tem aumentado, as casas reabilitadas são frequentemente vistas como investimentos e colocadas no mercado de alojamento local e as novas casas são, muitas vezes, dirigidas ao mercado da habitação de luxo e a compradores estrangeiros, com mais poder de compra. Como consequência, muitas pessoas, entre elas os jovens, têm dificuldade em encontrar uma casa na cidade e são obrigados a ir viver para os subúrbios. A vida nos subúrbios foi descrita como sendo menos saudável, uma vez que as oportunidades para caminhar são menos frequentes e as pessoas têm de perder muito tempo em deslocações casa-trabalho, o que gera cansaço e stress e prejudica a vida familiar. Preocupantes são também os casos das pessoas – identificados pelos participantes do estudo – que são forçadas a mudar de casa porque não têm meios para se manterem onde viviam. Sobretudo no caso dos mais velhos, isto pode resultar em desenraizamento, estados emocionais negativos, diversos problemas de saúde e, eventualmente, em morte prematura.
3. Aumento da construção e reabilitação urbana
Segundo os participantes, a cidade atravessa uma grande onda de construção e renovação. A renovação da cidade foi considerada benéfica e até necessária, trazendo melhores condições sanitárias e uma estética mais agradável, fatores associados pelos participantes a um maior bem-estar e melhor saúde. Por outro lado, as obras, que acontecem em vários pontos da cidade, geram barulho intenso e poluição e dificultam a mobilidade, o que provoca mais trânsito e, por consequência, mais barulho e mais poluição. Estes fatores foram considerados muito negativos para a saúde física e mental dos habitantes da cidade.
4. Mudanças no comércio local
Os participantes relataram que, à medida que muitas lojas “emblemáticas” da cidade foram fechando, devido à abertura de grandes superfícies comerciais na periferia e à mudança de função dos edifícios da cidade, foram surgindo lojas de recordações para turistas e bares, restaurantes e cafés orientados para um certo gosto internacional, bem diferentes do que era habitual na cidade. Estas mudanças foram sobretudo vistas como negativas: por um lado – ainda que nem todos os participantes estivessem de acordo sobre este ponto – foram associadas a um aumento de preços e à perda de identidade da cidade; por outro lado, algumas pessoas com menor mobilidade e que vivem no centro da cidade, deixam de ter a capacidade de ir às compras, passando a ficar dependentes de terceiros e passando a caminhar menos.
5. Perda de lugar
Os contributos dos participantes indicam que a relação e a identificação com o Porto, enquanto lugar distintivo, poderá estar a mudar e até a perder-se. Isto acontece à medida que as lojas emblemáticas são substituídas por estabelecimentos comerciais indistintos, iguais aos que se podem encontrar em qualquer parte do mundo e que o tecido associativo local e as relações assentes no lugar desaparecem. Esta perda do sentido do lugar pode gerar um sentimento de alienação ou mesmo de expropriação face ao lugar, no caso dos moradores de zonas onde os processos de gentrificação são mais intensos, podendo gerar tensões sociais e afetar negativamente a saúde mental, sobretudo dos mais velhos, que, em princípio, terão mais memórias e estarão mais enraizados no lugar.
Numa perspetiva oposta, alguns participantes questionaram o contributo das mudanças recentes na cidade para essa perda de identidade e defenderam que o turismo também gera rendimentos que podem ser utilizados para preservar essa identidade. Alguns participantes indicaram ainda que a identidade da cidade já se encontrava ameaçada antes da atual onda de turismo e renovação, pelo abandono e degradação do centro e zonas históricas.
6. Mudanças socioeconómicas gerais
Os participantes identificaram ainda um conjunto de mudanças na cidade e na vida dos seus habitantes, relacionáveis com a gentrificação transnacional, que não se enquadram em nenhum dos temas anteriores. A visibilidade internacional do Porto enquanto destino turístico de excelência foi encarada, de uma forma geral, como sendo positiva para a cidade, na medida em que beneficia a sua economia, logo, os padrões de vida e, consequentemente, a saúde. No entanto, esta realidade contribuiu também para o agravamento das desigualdades: os participantes chamaram a atenção para os sem-abrigo, para a construção de habitação de luxo ao lado de bairros sociais na zona ocidental da cidade e para uma maior segregação, expulsando as populações mais pobres, por via do aumento do preço da habitação. O aumento das desigualdades e a segregação foram associados a pior saúde. Os participantes trouxeram ainda para a discussão a situação dos consumidores de drogas que se encontram acampados, em condições precárias, na zona da Pasteleira, tendo-se deslocado para lá após a demolição do bairro do Aleixo.
José Pedro Silva, investigador do ISPUP e primeiro autor deste estudo, reforça que “de uma maneira geral, e embora reconheçam que as transformações na cidade resultantes da sua atratividade internacional, sobretudo do crescimento do turismo, tenham melhorado vários aspetos da vida na cidade, os participantes mostraram-se preocupados com a dimensão do fenómeno, sobretudo no centro da cidade e nas suas zonas históricas, e as suas consequências para a saúde e o bem-estar, principalmente para os grupos mais vulneráveis ”.
Na sequência destas mudanças observadas, os participantes do estudo sugeriram algumas medidas que, na sua opinião, poderiam ajudar a atenuar as desigualdades agravadas pela gentrificação:
Para além disso, o programa de proteção de lojas históricas do Porto foi apontado como um exemplo de uma boa medida já implementada.
Este estudo foi realizado no âmbito do projeto “HUG – os efeitos na saúde da gentrificação, da relocalização e da insegurança residencial nas cidades: um estudo multi-coorte quase experimental”, coordenado pela investigadora do ISPUP, Ana Isabel Ribeiro, e financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (referência PTDC/GES-OUT/1662/2020).