Estudo alerta para as assimetrias sociais no acesso e na qualidade dos cuidados de saúde perinatais

O estudo “Strengthening resilience of healthcare systems by focusing on perinatal and maternal healthcare access and quality”, publicado recentemente na The Lancet Regional Health – Europe, estabelece uma relação clara entre as grandes crises mundiais e a deterioração da qualidade e do acesso aos cuidados de saúde materno-infantis para mães e crianças com um estatuto socioeconómico mais desfavorável. Os investigadores deixam oito recomendações para fazer face a estas desigualdades e alertam que, se nada for feito, a nova crise financeira irá agravar a situação.

O presente estudo estabelece uma relação entre as duas últimas grandes crises mundiais – a Grande Recessão (2007-2009) e a Pandemia de Covid-19 – e as suas simetrias, no que diz respeito aos impactos sentidos no acesso e na qualidade dos cuidados de saúde materno-infantis. Nesse sentido, o estudo propôs-se a olhar para estes impactos e a aprender com eles, com o objetivo final de indicar sugestões concretas para a melhoria do acesso e da qualidade destes cuidados.

A relação estabelecida entre estas duas grandes crises assenta em quatro razões comuns:

  1. As crises e o seu impacto no acesso e na qualidade dos cuidados materno-infantis podem impedir um início de vida saudável, particularmente quando afetam os primeiros 1001 dias de vida da criança (um período muito determinante para a saúde futura);
  2. Contextos económicos mais adversos, provocados por estas crises, são particularmente desafiantes para mulheres grávidas e mães solteiras de classe económica mais baixa (muitas vezes, mais jovens e com situações profissionais mais precárias) que vivem perto do limiar da pobreza e que, por isso, serão as primeiras a sentir dificuldades económicas e de acesso aos cuidados de saúde;
  3. O estatuto socioeconómico mais baixo é um dos principais determinantes da mortalidade prematura;
  4. O estatuto socioeconómico mais baixo condena, desde muito cedo, a criança a crescer num contexto desfavorável e contribui, assim, para um ciclo vicioso na relação entre as desigualdades e a mortalidade.

Privilégio, Poder e Prepotência, são também apontados, neste estudo, como os 3 P’s comuns a estas duas grandes crises – Recessão e Pandemia – com ligações estruturais pré-existentes, que determinaram a forma como a Grande Recessão foi sentida e como o Covid-19 se propagou e se continua a propagar, entre as populações. Essencialmente, é descrito que, para aqueles que são privilegiados, manter esses privilégios durante os momentos de crise é uma motivação que os leva a fazer uso do seu poder e que domina as suas ações/decisões prepotentes.

As oscilações dos indicadores socioeconómicos têm, por sua vez, impacto nas desigualdades estruturais sentidas pelas mulheres e pelas crianças que não têm estes mesmos 3 P’s (privilégio, poder e prepotência) e que assim, correm maior risco de viverem sérias dificuldades financeiras nestes períodos de crise. Isto, naturalmente, faz que que acabem também por viver em contextos de maior fragilidade e conflito, em que a coesão social falha e a capacidade de resposta institucional e dos serviços de saúde também é limitada. Assim, os piores indicadores de saúde, observados nestas mulheres e crianças, são essencialmente explicados por três fatores: as desigualdades estruturais pré-existentes, os seus comportamentos em relação à saúde e a falta de acesso e de qualidade dos cuidados de saúde de que dispõem.

Com base nestas premissas, a investigadora do ISPUP, Julia Doetsch, doutoranda em Saúde Pública e primeira autora este estudo, questiona: “Não estaremos nós a hipotecar o futuro da nossa sociedade ao ignorar o impacto social, económico e na saúde, que têm estas crises, em mães e crianças que vivem em contextos mais desfavorecidos?”

Em resposta, reitera que as desigualdades sociais devem ser uma preocupação central da epidemiologia – particularmente em períodos de crise, em que as desigualdades pré-existentes se acentuam – uma vez que existe uma relação inequívoca entre o estatuto socioeconómico mais desfavorecido e a mortalidade.

O estudo alerta que esta “nova” crise financeira, que já se faz sentir, só contribuirá ainda mais para o agravamento destas desigualdades e, por isso, os investigadores apelam ao “Poder através Saúde”, isto é, pedem que se olhe para os desequilíbrios de poder através de uma “lente” de equidade pública, para que o processo de tomada de decisão seja ausente de preconceitos e permita a igual participação de todos os cidadãos.  

A Organização Mundial da Saúde (OMS) insistiu na necessidade de se reforçar a resiliência dos sistemas de saúde como uma estratégia para fazer face a períodos de crise. Nesse sentido, o presente estudo apresenta oito recomendações para melhorar a qualidade e o acesso dos cuidados materno-infantis e “dar a cada criança o melhor início de vida possível”:

  1. Cobertura mais abrangente dos serviços de saúde (diminuindo, por exemplo, taxas e encargos para o utente, para diminuir as barreiras no acesso aos cuidados);
  2. Plano de cuidados de saúde holístico, para a maternidade (destinados à comunidade e procurando mitigar as desigualdades no acesso à saúde e diminuir a mortalidade);
  3. Distribuição suficiente e eficiente de recursos humanos e físicos pelas unidades de saúde (para aumentar a capacidade e permitir a flexibilidade destes serviços);
  4. Modalidades alternativas e flexíveis de distribuição de cuidados de saúde (por exemplo, teleconsultas);
  5. Equipas de trabalhadores robustas, flexíveis e motivadas, que tenham o apoio e as condições necessárias ao bom desempenho das suas funções:
  6. Políticas redistributivas que garantam que as famílias com crianças pequenas estão acima da linha de pobreza (por exemplo, licença parental remunerada com incentivos à licença de paternidade, acompanhamento de enfermeiros nos primeiros meses de vida, acesso universal a programas de educação infantil de qualidade públicos);
  7. Fluxos e sistemas de informação mais efetivos que possam apoiar os processos de decisão política, sobretudo em períodos de crise;
  8. Interligação e partilha de informação pelas diferentes instituições de saúde.

Por fim, o estudo reforça que as mulheres e as crianças de estatuto socioeconómico mais desfavorável, que muito sofreram com as grandes crises como a Recessão Económica e a Pandemia de Covid-19, continuarão a estar entre os grupos mais vulneráveis, no cenário de uma crise futura. Nesse sentido, as oito estratégias acima descritas devem ser consideradas prioritárias no sentido de promover uma melhor saúde para toda a sociedade e, em particular, uma melhor saúde perinatal.

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