De acordo com um estudo do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), a pandemia de COVID-19 transformou por completo, em todo o mundo, os rituais e costumes fúnebres e essa mudança impactou significativamente o processo de luto de cada indivíduo tendo tido consequências na sua saúde mental.
O estudo em causa teve como propósito averiguar quais os pensamentos e sentimentos dos adultos portugueses que tinham sofrido a perda de algum ente querido desde o início da pandemia de COVID-19 e qual o impacto dessa perda na sua vida quotidiana.
“O novo coronavírus foi responsável pelo aumento da taxa de mortalidade a nível mundial e pela mudança radical da vida de todos indivíduos. A estas alterações somou-se o facto de as pessoas não poderem estar junto dos seus em caso de doença, perto do leito de morte, durante funerais e em momentos de maior fragilidade”, explica Ana Aguiar, primeira autora deste estudo e investigadora do ISPUP, no laboratório Epidemiologia da infeção por micobactérias, VIH e outras infeções sexualmente transmissíveis, pertencente ao Laboratório associado para a Investigação Integrativa e Translacional em Saúde Populacional (ITR), coordenado pelo ISPUP.
A investigação, publicada na revista científica Plos One, foi realizada a partir das respostas a um questionário online, que foi divulgado nas redes sociais, e que esteve ativo entre novembro de 2020 e fevereiro de 2021.
De um total de 929 pessoas que preencheram o questionário, 752 (80.9%) reportaram não ter sofrido nenhuma perda de familiar, amigo ou conhecido. Apenas osrestantes 166 (17.9%), que afirmaram ter perdido alguém desde o início da pandemia,foram considerados para o presente estudo. A maioria dos participantes envolvidos eram mulheres (66.9%) sendo que a média de idades era de 37.3 anos e cerca de 70% possuíam grau de ensino superior.
Desta amostra, 28.3% tinham perdido avós, cerca de 22% um amigo e 9% tinham perdido um pai ou uma mãe.
Constatou-se que os participantes que estavam a vivenciar uma experiência de luto apresentavam alta prevalência de sintomas de ansiedade (30.7%) ou depressão (10.2%), ambos os casos com maior expressão nas mulheres. Adicionalmente, verificou-se que os procedimentos post mortem desempenhavam um papel preponderante no processo de luto dos indivíduos.
Dos 166 participantes que afirmaram ter perdido alguém desde o início da pandemia, 85 responderam à seguinte questão aberta “Em que medida é que a sua perda teve impacto no seu dia-a-dia?”.
Através da análise de conteúdo às respostas facultadas, os investigadores identificaram quatro grandes temas, que resumem o modo como os adultos portugueses vivenciaram a sua perda em vários domínios: a perceção da inadequação do ritual fúnebre; a tristeza, medo e solidão; as mudanças no sono e concentração e o aumento dos níveis de ansiedade; e as preocupações com a situação pandémica.
As medidas de isolamento e quarentena, assim como a proibição da concentração de pessoas num mesmo espaço, levaram à proibição das visitas nos hospitais e nos estabelecimentos de saúde e ainda à impossibilidade de participar em rituais fúnebres.
“As pessoas não podiam expressar os seus sentimentos de perda nem se despedir devidamente da pessoa que tinha falecido. Desta forma, os sentimentos de incerteza exacerbaram-se e as perdas tornaram-se ‘ambíguas’ uma vez que a experiência de luto se revelou incompleta”, diz Ana Aguiar.
O testemunho de uma participante que perdeu a tia, o pai e a mãe de uma melhor amiga, exemplifica o impacto que as alterações nos rituais fúnebres tiveram no processo de luto: “Pior do que a perda em si é o facto de não podermos fazer o luto, não podermos ir a cerimónias, não poder consolar a família e amigos e receber consolo, não temos a oportunidade de nos distrair de alguma forma, as notícias globais tardam a melhorar.”
Os sentimentos de tristeza, medo e solidão foram comuns entre os participantes. Os indivíduos contaram que pensaram mais na sua saúde e na sua própria morte e que tinham medo de perder mais algum ente querido. Ademais, revelaram sentir medo de como o futuro mudou, de como a situação pandémica alterou completamente a forma de viver e o facto de perceberem que aquela pessoa já não fazia mais parte das suas vidas.
O luto está intrinsecamente ligado à solidão, e quanto mais próximo for o ente querido perdido, mais avassalador é esse sentimento. O testemunho de uma mulher que perdeu o seu cônjuge, dá conta da solidão vivenciada quando se perde um ente querido muito próximo: “Tudo. A falta de tudo. A solidão”.
A ansiedade é uma resposta natural do organismo a uma perda e faz com que os indivíduos se sintam mais vulneráveis e se questionem mais sobre a imprevisibilidade da vida. “O vazio causado pela perda e o processo de luto inacabado podem ter um impacto contínuo e devastador nos comportamentos diários dos enlutados afetando o seu trabalho e a sua saúde mental a longo-prazo”, indica Ana Aguiar.
Uma outra participante que perdeu o pai durante a pandemia afirmou que os seus comportamentos foram alterados durante o processo do luto e que sentiu mudanças: “Em diferentes aspetos: não dormir, não conseguir concentrar nem pensar claramente, comer compulsivamente, momentos de ansiedade frequentes. Maior impulsividade e desmotivação para todas as tarefas do dia-a-dia. Falta de empatia / paciência.”
Todos as pessoas foram afetadas pela situação pandémica de formas muito diferentes, dependendo também da própria experiência vivida pela pessoa, o funcionamento individual de cada um e o seu contexto de vida. A incerteza sobre o futuro da situação pandémica em analogia com as suas perdas preocupou os participantes que responderam à questão de investigação.
Também a passagem temporária pela vida inquietava os indivíduos. Um último testemunho de alguém que perdeu uma avó mostra que a reflexão sobre o ciclo da vida foi algo comum durante este período: “Fez-me compreender o quanto efémeros nós somos”.
A primeira autora do estudo reforça a mensagem de que “o luto, a forma como o luto foi alterado, e todos os processos difíceis que o luto envolve, podem influenciar a nossa capacidade de avançarmos e continuarmos com a nossa vida”.
Acrescenta ainda que “se este processo não for bem conseguido ou se não passar pelos diferentes passos associados ao luto, pode, de facto, aumentar o risco de problemas de saúde mental, o que pode levar a complicações como depressão, ansiedade e stress pós-traumático a longo-prazo ou até a transtornos de luto prolongado.”
O luto é um processo longo composto por fases que devem ser respeitadas – a negação; a raiva e a revolta; a negociação; a depressão e o luto pela vida que se perdeu; e, eventualmente a aceitação. Em período pandémico, este processo foi desestabilizado e tornou-se incompleto.
De acordo com Ana Aguiar, os profissionais de saúde pública têm um papel essencial na criação de estratégias e ferramentas de apoio em conjunto com os colegas da área da psicologia. Mobilizar uma equipa multidisciplinar de profissionais que planeiem de antemão respostas para as pessoas que estão a passar por um processo de luto, pode ter efeitos muito benéficos para o bem-estar da população.
“A saúde pública não pode esquecer as questões do luto. Ainda estamos a tempo de ajudar as pessoas que perderam e continuam a perder familiares e amigos.”, frisa.
Este estudo intitula-se “A qualitative study on the impact of death during COVID-19: Thoughts and feelings of Portuguese bereaved adults” e foi também assinado por Raquel Duarte (ISPUP) e Marta Pinto (Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto).
A investigação faz parte do projeto de doutoramento de Ana Aguiar, que recebeu financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e do Programa Fundo Social Europeu (FSE).
Imagem: Julie Blake Edison / Unsplash