Um estudo do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), recentemente publicado na revista “Preventive Medicine”, concluiu que as crianças provenientes de contextos socioeconómicos menos favorecidos apresentam, já aos 7 e aos 10 anos de idade, alterações biológicas que as podem colocar numa trajetória de saúde menos favorável ao longo da vida devido às desigualdades sociais.
Segundo Sara Soares, primeira autora da investigação, coordenada por Sílvia Fraga, o trabalho avaliou “de que forma as condições socioeconómicas ao nascimento poderiam influenciar alguns marcadores da saúde cardiometabólica das crianças, como a pressão arterial, o perímetro abdominal e o índice de massa corporal (IMC)”. Na prática clínica, estes indicadores são usados para avaliar o estado de saúde cardiovascular dos adultos.
Sabe-se que “a doença cardiovascular é mais frequente em adultos que têm um estatuto socioeconómico mais baixo. Neste estudo, o que quisemos avaliar foi se, já no período da infância, crianças que pertencem a contextos socioeconomicamente mais desfavorecidos apresentam alterações nestes marcadores cardiometabólicos”, acrescenta.
Para avaliarem esta associação, os investigadores usaram informação recolhida das crianças que integram a coorte Geração XXI – um estudo longitudinal do ISPUP que segue, desde 2005, cerca de 8600 participantes que nasceram nas maternidades públicas da Área Metropolitana do Porto.
Analisaram-se os marcadores cardiometabólicos de mais de 2900 participantes da coorte, avaliados aos 7 e aos 10 anos de idade. Considerou-se o IMC, o perímetro abdominal, a pressão arterial sistólica e diastólica, a percentagem de massa magra, os triglicerídeos e a glicose.
Adicionalmente, analisaram-se a escolaridade e a ocupação dos pais, bem como o rendimento do agregado familiar, para fazer a caracterização do contexto socioeconómico da criança.
Há diferenças nos marcadores biológicos, de acordo com as condições socioeconómicas da família
Observou-se que as crianças que têm pais menos escolarizados, com ocupações profissionais menos diferenciadas ou que auferem rendimentos mais baixos apresentam, já aos 7 e aos 10 anos de idade, um IMC, perímetro abdominal e pressão arterial sistólica mais elevados.
Já as que têm pais mais escolarizados, com profissões mais diferenciadas e rendimentos mais altos, apresentam aos 10 anos níveis mais elevados de HDL (o chamado colesterol bom) em comparação com crianças de famílias menos favorecidas, concluiu o estudo designado Early life socioeconomic circumstances and cardiometabolic health in childhood: evidence from the Generation XXI cohort, disponível AQUI.
Estes resultados mostram “que o ambiente socioeconómico em que a criança nasce parece condicionar alterações biológicas já na infância. Ainda que isto não queira necessariamente dizer que as crianças irão desenvolver doença mais tarde na vida, o estudo parece mostrar que as que provêm de contextos mais desfavorecidos podem estar a crescer numa trajetória de saúde menos favorável”, concretiza.
Os níveis de proteína C-reativa também são mais altos
Num outro estudo, intitulado How do early socioeconomic circumstances impact inflammatory trajectories? Findings from Generation XXI, publicado na revista Psychoneuroendocrinology, e disponível AQUI, os investigadores do ISPUP mostraram, uma vez mais, que as condições socioeconómicas têm impacto nos marcadores biológicos das crianças.
Ao avaliarem o estatuto socioeconómico dos pais e os níveis de inflamação de mais de 2500 participantes da Geração XXI, aos 4, 7 e 10 anos de idade, os investigadores demonstraram que as crianças que nascem em contextos socioeconómicos mais desfavorecidos apresentam níveis de proteína C-reativa – um marcador inflamatório indicador de risco para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares – mais altos aos 10 anos de idade.
Com este estudo, percebeu-se que “as crianças que nascem em famílias com condições socioeconómicas menos favorecidas, apresentam níveis de inflamação mais elevados, logo na primeira década de vida, algo que até agora só tem vindo a ser demonstrado em estudos realizados em adolescentes e adultos”, refere Sara Soares.
“Desconhece-se se este processo de inflamação pode ser revertido durante a adolescência e até na idade adulta, mas percebemos que o estatuto socioeconómico dos pais provoca, logo nos primeiros dez anos de vida, alterações biológicas nos filhos. Assim, as crianças de contextos menos favorecidos parecem estar a crescer numa trajetória de saúde menos favorável”, acrescenta.
Combater as desigualdades socioeconómicas para evitar as desigualdades em saúde
Tendo em conta a evidência encontrada, Sara Soares sublinha a importância de reduzir as desigualdades socioeconómicas para prevenir desigualdades em saúde.
Um dos objetivos que a Organização das Nações Unidas (ONU) e os Estados-Membros definiram para 2030 na Agenda para o Desenvolvimento Sustentável é a redução das desigualdades. “Com estes dois estudos, percebemos que as diferenças no estatuto socioeconómico das famílias se podem estar a traduzir em desigualdades na saúde das crianças, e que tal pode estar a acontecer já desde a infância”, diz.
Por isso, “uma sociedade mais igualitária ajudaria a reduzir as desigualdades em saúde que se começam a manifestar muito precocemente”.
Imagem: Unsplash/Ben Wicks