From the emergence of a novel human virus to the global spread of a new disease

Capítulo III da série sobre o COVID-19

Tratamento da COVID-19

Autores:

Cláudio Silva – Unidade de Doenças Emergentes, Serviço de Doenças Infeciosas, Centro Hospitalar Universitário de São João, Porto

André Silva-Pinto – Unidade de Doenças Emergentes, Serviço de Doenças Infeciosas, Centro Hospitalar Universitário de São João, Porto e Unidade de Cuidados Intensivos de Doenças Infeciosas, Serviço de Doenças Infeciosas, Centro Hospitalar Universitário de São João, Porto

Lurdes Santos – Unidade de Doenças Emergentes, Serviço de Doenças Infeciosas, Centro Hospitalar Universitário de São João, Porto e Unidade de Cuidados Intensivos de Doenças Infeciosas, Serviço de Doenças Infeciosas, Centro Hospitalar Universitário de São João, Porto

Margarida Tavares – Unidade de Doenças Emergentes, Serviço de Doenças Infeciosas, Centro Hospitalar Universitário de São João, Porto e EPIUnit, Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto

António Sarmento – Unidade de Doenças Emergentes, Serviço de Doenças Infeciosas, Centro Hospitalar Universitário de São João, Porto e Unidade de Cuidados Intensivos de Doenças Infeciosas, Serviço de Doenças Infeciosas, Centro Hospitalar Universitário de São João, Porto

Atualmente não existe qualquer tratamento etiotrópico para a COVID-19 cuja eficácia e segurança tenham sido demonstradas, pelo que a terapêutica sintomática e de suporte constituem as únicas opções de tratamento. A maioria dos doentes necessitará apenas de terapêutica sintomática (hidratação, antipirético e anti-inflamatório). A abordagem de um doente com COVID-19, especialmente a abordagem do doente crítico, deverá ser multidisciplinar e decidida caso a caso.

Tratamento de suporte —Perante o doente com infeção respiratória aguda com suspeita de infeção por SARS-CoV-2 a terapêutica de suporte deve ser iniciada precocemente.

Doente com falência respiratória hipoxémica e síndrome de dificuldade respiratória aguda (ARDS) —Deve ser feita vigilância apertada de sinais de deterioração clínica, como falência respiratória rapidamente progressiva. A hipótese de falência respiratória hipoxémica deverá ser considerada quando os doentes apresentam frequências respiratórias altas e hipoxemia com SatO2 < 90% ou PaO2 < 60 mmHg, sobretudo quando refratárias a oxigenoterapia suplementar fornecida via máscara de oxigénio de alto débito com reservatório (fluxo de 10-15 L/min, FiO2 60 -95%). A utilização de oxigenoterapia com um fluxo superior a 6 litros/minuto deverá ser realizada exclusivamente em quartos com pressão negativa, dado o risco de aerossolização. Na ARDS, a falência respiratória resulta comumente de alterações na ventilação- -perfusão intrapulmonar ou presença de shunt. Pode ser definida de acordo com os seguintes critérios:

*IO (índice de oxigenação) = (FiO2 x Pressão média x 100) / PaO2 Nos doentes com ventilação mecânica invasiva, o IO deve ser o parâmetro preferencial para a estratificação da gravidade do ARDS

ISO (Índice de oxigenação usando SpO2) = (FiO2 x Pressão média x 100) / SpO2 Deve ser utilizado para a estratificação de risco nos doentes com ventilação mecânica invasiva, quando não é possível determinar o IO. Para o seu cálculo a FiO2 deve ser titulada até SpO2 88-97%

Nota: Apesar de os critérios de ARDS obrigarem à ventilação mecânica invasiva ou não invasiva, deve-se suspeitar de ARDS se cumpridos os outros critérios (início, imagiologia e origem do edema pulmonar) e haja uma insuficiência respiratória hipoxémica grave (com PaO2/FiO2 inferior a 300)

No doente com insuficiência respiratória em agravamento, a utilização de métodos não invasivos de oxigenação (oxigenoterapia nasal de alto fluxo e ventilação mecânica não invasiva) deverá ser evitada. Poderá, contudo, ponderar-se a sua utilização se se puder rapidamente passar a ventilação mecânica invasiva no caso de não haver melhoria.

A entubação não deve ser nunca protelada.

As terapêuticas de suporte disponíveis para estes doentes são:

Corticoterapia — Foi amplamente usada em doentes com pneumonia por SARS-CoV e MERS-CoV. No entanto, a evidência não favorece o seu uso, sendo desaconselhada pela recomendação interina da OMS na gestão de doentes suspeitos de infeção por SARS-CoV-2. De facto, uma revisão sistemática do uso de corticosteróides nos doentes com SARS e um estudo recente do seu efeito na mortalidade nos doentes com MERS-CoV não encontraram qualquer benefício, estando antes associado ao atraso na eliminação do vírus do trato respiratório inferior. Por outro lado, 3 estudos sobre o seu uso em doentes com SARS demonstraram aumento de risco de complicações, como psicose (relacionada com doses cumulativas maiores), diabetes e necrose avascular da cabeça do fémur, nos sobreviventes. Apesar de não recomendada por rotina, o seu uso pode ser considerado se coexistirem outras situações que o indiquem.

Antibioterapia —Por rotina, deve ser evitado o uso concomitante de antibióticos na ausência de sobreinfeção bacteriana suspeita ou confirmada.

Num estudo de 99 casos confirmados de COVID-19 admitidos no Hospital Jinyintan em Wuhan, 71% dos doentes receberam tratamento antibiótico por sobreinfeção bacteriana ou suspeita, com cobertura para agentes de pneumonia da comunidade, incluindo agentes atípicos, ou agentes de pneumonia nosocomial: a duração de antibioterapia variou entre 3–17 dias (mediana 5 dias, âmbito interquartil 3-7).

Na fase inicial da doença, se não se conseguir excluir infeção bacteriana concomitante de acordo com as manifestações clínicas do doente, deverá ser feita cobertura para agentes de pneumonia adquirida na comunidade e Staphylococcus aureus com amoxicilina com ácido clavulânico (com ou sem azitromicina).

Nas fases mais tardia de doença, especialmente no doente admitido em cuidados intensivos, se houver suspeita de pneumonia bacteriana, a antibioterapia deverá ser ajustada à epidemiologia de cada local, devendo cobrir bacilos Gram negativo multirresistentes e ponderar cobertura de S. aureus meticilino-resistente.

Tratamento de doentes em choque sético — A infeção por SARS-CoV-2 pode complicar-se com choque sético, especialmente na fase tardia, dada a imunoparalisia associada ao vírus. Este deverá ser tratado com as medidas habituais para esta situação.

Tratamentos etiotrópicos de infeções por SARS-CoV-2 — Não existe informação suficiente com base em ensaios clínicos aleatorizados e controlados para recomendar tratamentos antivíricos específicos para infeções por SARS-CoV-2. O conhecimento sobre a prescrição de antivíricos de largo espetro nas infeções pelos novos coronavírus identificados nas anteriores epidemias resulta da análise do tratamento de doentes infetados por SARS-CoV e MERS-CoV.22 Como opções, inclui-se o uso individual ou combinado de interferão, ribavirina e inibidores da protease.

Os antivíricos como o interferão e a ribavirina, que demonstram uma inibição forte do MERS-CoV in vitro, têm sido usadas no tratamento de casos de MERS com vários graus de sucesso. A ribavirina constitui um análogo nucleosídeo sintético da guanosina que interfere na síntese do mRNA viral. O seu efeito terapêutico máximo foi observado em combinação com interferão, sendo a maior parte dos dados provenientes de estudos retrospetivos no chamado mundo real.

A terapêutica combinada de ribavirina com IFN-α2b adicionalmente ao tratamento de suporte para doentes com infeção por MERS-CoV, resultou numa maior sobrevida (70%) ao 14º dia após confirmação laboratorial da infeção que a sobrevida de doentes que apenas receberam tratamento de suporte (29%).

Já os dados de estudos retrospetivos relativos aos efeitos na sobrevida da combinação de ribavirina com IFN-β são discordantes, em parte devido a diferentes frequências de comorbilidades e tempo de início do tratamento após o início de sintomas. A janela de oportunidade foi curta e o tratamento foi mais eficaz quando iniciado nas primeiras 48 horas após confirmação do diagnóstico.

Num ensaio clínico em que o comparador eram controlos históricos, envolvendo 152 doentes no braço de tratamento e 111 no grupo controlo, o uso combinado de lopinavir/ ritonavir com ribavirina comparado com o uso isolado de ribavirina em doentes com SARS-CoV demonstrou uma diminuição na frequência de efeitos clínicos adversos (definidos como ARDS ou morte) nos expostos ao tratamento combinado. Foi também demonstrada uma diminuição na necessidade de usar corticosteróides e em infeções nosocomiais no grupo tratado com lopinavir/ritonavir.

Num estudo de caso, o uso de ribavirina combinada com lopinavir/ritonavir e IFN-α2b num doente idoso com múltiplas comorbilidades infetado por MERS-CoV resultou na eliminação do vírus 6 dias após o início de tratamento.31 Num estudo recente, o uso combinado de ribavirina com lopinavir/ritonavir como profilaxia pós-exposição em profissionais de saúde expostos a doentes infetados por MERS-CoV demonstrou uma redução de 40% no risco de infeção. Encontra-se em curso um estudo controlado com placebo na Arábia Saudita para avaliar o benefício do uso de lopinavir/ritonavir combinado com IFN-β1b em doentes com MERS-CoV.

remdesivir é um pró-fármaco de um antivírico de largo espetro análogo da adenosina que inibe a ARN polimerase ARN dependente, atuando assim após a entrada do vírus na célula. Estudos pré-clínicos já tinham demonstrado a sua eficácia in vitro ao inibir a replicação de MERS-CoV e SARS-CoV em culturas de células epiteliais respiratórias humanas, em ratos e em modelos de primatas não humanos.

Recentemente foi avaliada a eficácia antivírica in vitro de sete fármacos (ribavirina, penciclovir, nitazoxanida, nafamostat, cloroquina, remdesivir e favipiravir) em culturas de células Vero E6 infetadas por uma estirpe de SARS-CoV-2 isolada de um doente (nCoV-2019BetaCoV/Wuhan/WIV04/2019).

De entre estes fármacos, dois (o remdesivir e a cloroquina) inibiram de forma potente a infeção pelo SARS-CoV-2 com baixas concentrações micromolares, demonstrando ao mesmo tempo um alto índice de seletividade. O índice de seletividade calcula o rácio entre a atividade antivírica de um fármaco e o seu efeito tóxico (i.e., teoricamente, quanto mais alto o valor do índice, maior é a eficácia e segurança de um fármaco durante o tratamento in vitro de determinada infeção vírica). Para o remdesivir, a concentração do fármaco que induz metade do seu efeito máximo (EC50) foi de 0.77 μM, a que induz metade do seu efeito citotóxico (CC50) foi > 100 μM e o índice de seletividade (SI) foi > 129.87. Dados preliminares demonstraram que o remdesivir inibe também a infeção pelo vírus em linhagens de células humanas (Huh-7). A cloroquina, conhecida pelo seu efeito anti-malárico e pelo seu uso em doenças autoimunes, apresenta também efeitos antivíricos através da elevação do valor do pH endossómico necessário para a fusão do vírus assim como da glicosilação de recetores celulares necessários para a ligação do SARS-CoV. Assim, este fármaco atua quer nas fases de entrada quer na pós-entrada do ciclo de vida do vírus. A sua atividade imunomoduladora contribui ainda para o efeito sinérgico deste. Para a cloroquina, os valores de EC50, CC50 e SI foram de 1.13 μM, > 100 μM e > 88.50, respetivamente.

Os resultados da rápida sequenciação genómica do SARS-CoV-2 associados à modelação molecular baseada nos genomas de proteínas víricas relacionadas, sugerem alguns fármacos potencialmente eficazes na sua inibição, incluindo o lopinavir/ritonavir.

baricitinib surge também como outro dos fármacos já atualmente comercializados que, com base no seu mecanismo de ação, previsivelmente poderá reduzir a capacidade de o vírus infetar as células pulmonares. Como referido anteriormente (cf. Virologia), o SARS-CoV-2 poderá infetar as células alveolares pulmonares através de um processo de endocitose após ligação ao recetor ACE-2. Um dos reguladores do processo de endocitose nestas células é a proteína cínase associada ao adaptador AP2 (AAK1). A inibição desta AAK1 pelo baricitinib pode assim bloquear a passagem do vírus para o interior das células alveolares.

No entanto, todos estes estudos reportam decisões experimentais, pelo que o uso destes fármacos não pode ser recomendado fora de um contexto investigacional.

Outras intervenções farmacológicas adjuvantes — Uma ampla variedade de agentes, como macrólidos, inibidores da COX-2, inibidores mTOR (como o sirolimus), estatinas e vitamina C em alta dose, têm sido usados em doentes com infeções respiratórias víricas como fármacos adjuvantes na resposta imunopatológica, sem, no entanto, existir até à data evidência que o suporte.20 Devido ao seu potencial efeito antiinflamatório e possíveis efeitos antivíricos, o benefício dos macrólidos foi estudado em doentes infetados com MERS-CoV num estudo retrospetivo multicêntrico na Arábia Saudita envolvendo 349 doentes graves. Não se encontrou uma redução na mortalidade aos 90 dias ou uma maior rapidez na eliminação do vírus das vias respiratórias.

Descarregue o PDF do documento “Da emergência de um novo vírus humano à disseminação global de uma nova doença — Doença por Coronavírus 2019 (COVID-19) – Tratamento da COVID-19_03-03-2020“.

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