Um estudo pioneiro realizado no Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) concluiu que os níveis de exposição alimentar da população portuguesa à acrilamida são preocupantes para a saúde pública, uma vez que podem acarretar riscos para a saúde.
Esta investigação tinha como objetivo estimar a exposição alimentar dos portugueses à acrilamida, um contaminante alimentar que se forma durante a confeção e o processamento dos alimentos a altas temperaturas. Era também do interesse dos investigadores estudar os fatores associados a esta exposição.
“Os resultados deste estudo mostram-nos que todos os portugueses se encontram diariamente expostos a níveis preocupantes de acrilamida, que esta exposição provém de diferentes fontes alimentares e que todas as faixas etárias estão sujeitas aos seus possíveis efeitos neoplásicos”, explica Sofia Almeida Costa, primeira autora do estudo coordenado por Carla Lopes e Duarte Torres e desenvolvido no âmbito do projeto FOCAcCia (Exposição a aditivos alimentares e a contaminantes resultantes do processamento e embalagem de alimentos: definir padrões e os seus efeitos na adiposidade e na função cognitiva da infância à adolescência).
A acrilamida é um contaminante alimentar que se forma durante o processamento térmico dos alimentos, quer na confeção doméstica quer durante o processamento industrial.
A formação deste contaminante resulta de uma extensão das reações de Maillard. Estas reações são responsáveis pelo escurecimento e pela formação de aromas característicos nos alimentos, particularmente os fornecedores de hidratos de carbono, quando estes são aquecidos a altas temperaturas. Este contaminante alimentar forma-se a temperaturas superiores a 120 ºC em condições de baixa humidade a partir de reações entre compostos que estão naturalmente presentes nos alimentos, como os aminoácidos, principalmente a asparagina, e os açúcares redutores como são exemplo a glicose e a frutose.
Fritar, assar, torrar e tostar são os principais métodos de confeção responsáveis pela formação da acrilamida quer industrialmente quer em contexto doméstico.
Podemos encontrar este contaminante presente em alimentos ricos em hidratos de carbono como são exemplo o pão, as tostas, os cereais de pequeno-almoço, as bolachas e os biscoitos, as papas e fórmulas infantis, os snacks (ex.: tortilhas de milho, bolachas salgadas e barras de cereais), as batatas fritas ou assadas (caseiras ou comerciais), o café e os substitutos de café,e o chocolate.
A estimativa de exposição da população portuguesa à acrilamida, realizada pelos investigadores, teve por base dados individuais de consumo alimentar recolhidos no âmbito do Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física (IAN-AF) de 2015-2016.
Para este estudo foi considerada uma amostra representativa da população portuguesa que contou com 5811 participantes com idades compreendidas entre os 3 meses e os 84 anos. Foi estimada a exposição e os fatores associados para todos os grupos etários e os indivíduos foram estratificados por sexo, nível educacional e região. Nesta amostra, 52% eram mulheres, 66% eram adultos ou idosos, e 45% tinham o 3º CEB ou ensino superior. Cerca de 800 dos participantes tinham menos de 3 anos, 1153 eram crianças ou adolescentes (entre os 3 e os 17 anos) e cerca de 3850 tinham mais de 18 anos.
As estimativas desta investigação sugerem que as crianças (de 1 aos 2 anos e dos 3 aos 9 anos) e os adolescentes representam um grupo populacional particularmente suscetível e preocupante, uma vez que a sua exposição a este contaminante, por peso corporal, é superior. Os homens quando comparados com as mulheres apresentam maior exposição alimentar à acrilamida. Também os fumadores em comparação com os não-fumadores estão mais expostos ao contaminante. Já os idosos e as pessoas com menor nível de escolaridade são as que apresentam menor risco associado a esta exposição.
A exposição à acrilamida ocorre maioritariamente por via alimentar e as fontes alimentares que contribuem para esta exposição variam de acordo com o grupo populacional, visto que os padrões de consumo sofrem mudanças ao longo da vida.
Para crianças com menos de 3 anos os cereais infantis, as bolachas e as fórmulas infantis são as principais fontes de exposição à acrilamida. Dos 3 aos 17 anos as principais fontes de exposição à acrilamida são o pão, as bolachas, os cereais de pequeno almoço e as barras de cereais. Para os adultos, o pão, o café e as batatas fritas são as maiores fontes contribuidoras para a exposição.
No caso dos fumadores, a exposição à acrilamida suscita preocupação redobrada, dado que a estas fontes alimentares acresce a exposição a uma elevada concentração de acrilamida presente no fumo do tabaco.
Os investigadores alertam para a necessidade de cautela aquando da interpretação dos dados dos contributos dos vários alimentos para a exposição à acrilamida, pois “cada alimento tem uma concentração diferente de acrilamida e nem sempre o alimento que mais contribui para a exposição é aquele que apresenta maiores concentrações”.
Acrescentam ainda que “um exemplo concreto desta situação são as fórmulas infantis que, apesar de surgirem como terceiro maior contribuidor para a exposição de acrilamida em crianças com menos de 1 ano, contêm níveis de acrilamida mais baixos do que em outros géneros alimentícios, como por exemplo cereais de pequeno-almoço, bolachas ou batatas fritas.”
Em 1994, a Agência Internacional de Investigação em Cancro (IARC) apontou a existência de possíveis efeitos carcinogénicos associados à acrilamida. Em 2015, a Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar (EFSA) corroborou a suspeita da IARC considerando válidos os efeitos neoplásicos da acrilamida.
Com base nos dados do inquérito alimentar e nos níveis de ocorrência de acrilamida em alimentos que foram compilados em 2015 pela EFSA, foi possível caracterizar o risco de ocorrência de neoplasias e neuropatias periféricas associadas à exposição dos portugueses à acrilamida.
Os resultados revelaram que todos os portugueses em todos os percentis de consumo apresentavam níveis de exposição à acrilamida preocupantes quanto a possíveis efeitos neoplásicos (principalmente as crianças e os adolescentes).
Quanto à probabilidade de ocorrência de neuropatias periféricas, esta não foi considerada preocupante em nenhum dos grupos populacionais nem para nenhum dos percentis de consumo.”
A redução da exposição à acrilamida pode partir da iniciativa do consumidor. Para o efeito, a investigadora Sofia Almeida Costa enunciou algumas dicas de mitigação da exposição à acrilamida em contexto doméstico:
Para reduzir a presença da acrilamida nos alimentos durante o processamento industrial, em 2017, a Comissão Europeia publicou o Regulamento (EU 2017/2158) no qual estabeleceu medidas de mitigação e níveis de referência que se dirigem a todas as fases da cadeia alimentar. Estas medidas podem ser adotadas pela indústria alimentar durante a aquisição e armazenamento de matéria-prima, na formulação da receita e/ou no fabrico de diversos alimentos. Este regulamento declara que os níveis de acrilamida devem ser tão baixos quanto possível e abaixo dos níveis de referência em todos os alimentos cuja concentração coloque em risco a saúde da população.
“Os resultados desta investigação apontam para a necessidade de monitorizar continuamente a ocorrência de acrilamida nos alimentos produzidos industrialmente e a promoção de estratégias que minimizem a formação de acrilamida durante o processamento doméstico. É necessário reduzir os níveis de exposição à acrilamida especialmente nas faixas etárias mais jovens mais suscetíveis aos seus riscos para a saúde”, colmata Sofia Almeida Costa.
Atualmente, existe ainda falta de informação sobre a ocorrência de acrilamida especificamente em amostras alimentares portuguesas, pelo que os resultados desta investigação representam o primeiro passo na avaliação do risco da exposição a este contaminante. Estes resultados podem ser usados para desenhar novas e mais eficientes intervenções de saúde pública com vista à redução da exposição à acrilamida em particular nas crianças, nos homens e em indivíduos fumadores.
No futuro, os investigadores querem averiguar se as normas estabelecidas pela Comissão Europeia foram seguidas pelas indústrias e se a concentração de acrilamida nos alimentos diminuiu. Querem ainda avaliar o real impacto do regulamento e das medidas adotadas na redução da exposição dos portugueses a este contaminante.
A presente investigação foi premiada em 2020 no XIX Congresso de Nutrição e Alimentação (CNA), organizado pela Associação Portuguesa de Nutrição (APN).
O estudo intitula-se Risk characterization of dietary acrylamide exposure and associated factors in the Portuguese population eé também assinado pelos investigadores Daniela Correia, Catarina Carvalho, Sofia Vilela e Milton Severo.
Este artigo foi desenvolvido a partir do projeto financiado pelo FEDER do Programa Operacional de Competitividade e Internacionalização e da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P. – FCT: “FOCACCIa: Exposição a aditivos alimentares e a contaminantes resultantes do processamento e embalagem de alimentos: definir padrões e os seus efeitos na adiposidade e na função cognitiva da infância à adolescência” PTDC/SAU-PUB/31949/2017 (POCI-01-0145-FEDER-031949).
Imagem: Unsplash/Christopher Williams